Ontem à noite tomei um trago no Vieira Souto, meu amigo Trino junto no coração da Cruz Vermelha. Falamos das coisas de sempre: a vida, o tempo, mulheres, o inevitável caminho para a morte, o que ainda precisa ser feito. Mas tudo isso em 10% do tempo – nos outros 90% estivemos focados num tema essencial: João Saldanha.
Estivemos no Cinefoot Tour, no Centro Cultural da Justiça Federal, direção do nosso querido amigo tricolor Antonio Leal, para assistirmos a “João”, fabuloso documentário dirigido por André Iki Siqueira e Beto Macedo em 2008/2009, praticamente inédito em cinema. Uma obra-prima que destrincha uma personalidade fundamental da vida brasileira. Para alguns menos favorecidos do ponto de vista histórico-intelectual, Saldanha podia ser um personagem de si mesmo, um fanfarão bem-humorado – tudo bem, ele dava seus tiros, mas era preciso compreender todo o processo. Já para quem entende do riscado – e não é preciso ser comunista para entendê-lo -, João foi – e é! – uma figura essencial do país, principalmente entre os anos 40 e 80. Esteve sempre muito perto do poder – contra ele, naturalmente -, viveu os melhores anos do futebol brasileiro, enfrentou polícia, generais e ditadura. Encarou até os 21 anos de jejum do seu amado Botafogo entre 1968 e 1989 – e deve ter algum sentido que tenha falecido em 1990, logo após o fim do período. Ah, e Saldanha era o comandante do Botafogo quando nós, do Fluminense, sofremos a maior chinelada em finais de nossa história – os 6 x 2 de 1957 -, o que torna sua presença aqui neste humilde espaço ainda mais paradoxal – e importante como sempre! – e instigante. Mas o fato é que Saldanha tem um papel decisivo que pouca gente sabe na história do PANORAMA TRICOLOR.
Em 1979 eu era um menino com todo o futuro do mundo pela frente. Ainda vivíamos numa ditadura cruel, mas os garotos eram loucos por futebol e eu não fugi à regra. Em minha casa, jornais todos os dias: futebol começou a ser minha vida e passei a lê-los diariamente por causa dos esportes, depois por tudo. Duas ou três vezes por semana lá estava João Saldanha no JB. Passei a achar muito legal aquele senhor falando das coisas com graça e, nos domingos à tarde, ele era o comentarista da Rádio Globo – o mais incrível é que o que dizia saía publicado no dia seguinte – texto limpo, claro, direto, simples e ao mesmo tempo charmosíssimo, igual ao que minhas três fãs falam de mim. Somente anos depois é que fui saber que a importância de Saldanha ia muito, mas muito além do futebol. Enfim, comecei imediatamente a ler sempre três jornalistas: o João, o Achilles Chirol (em O Dia) e Ivan Lessa (no Pasquim). Pode parecer muito para uma criança de dez anos e era mesmo: minha casa sempre foi anarquia. Depois soube que pais de amigos meus ficavam assustados porque eu lia o Pasquim – lógico, um dia eu entendi.
Por causa destes três sujeitos, aos poucos trilhei um caminho que nunca mais acabou: o de ler diariamente qualquer coisa. Isso me deu combustível para me tornar um leitor ávido e, sete ou oito anos depois da morte de João, eu publiquei meus primeiros textos na internet. Em 2006, isso descambou para o futebol, depois escrevi livros, reuni amigos e agora estamos felizes por aqui. Tornei-me um cronista de futebol por influência direta de João Saldanha.
Rever o João me emocionou muito ontem no cinema, até agora. Para os que conhecem seu texto impecável, é fácil perceber que faço verdadeiros plágios dele – um deles, na expressão “monstro” quando se quer dizer de um craque em campo – eu a li pela primeira vez em 1979, logo depois que vencemos a Gávea por 3 x 0 e Paulo Goulart pegou pênalti de Zico. E Cristóvão fez um golaço. No dia seguinte, escreveu: “Pintinho e Paulinho (Goulart) foram dois monstros”. Até hoje, 34 anos depois, trago isso comigo. Num dado momento do documentário, meus heróis do rádio estão todos lá: Waldyr Amaral, Jorge Curi, Mário Vianna. Quarenta anos num estalar de dedos. Assistir “João” é uma experiência fundamental para quem quer entender boa parte do Brasil da segunda metade do século XX – futebol, política, pobreza, luta e carnaval.
Saldanha me deu tantas aulas, tantas sobre tudo, tudo sem saber e à distância que não tenho palavras para agradecer o quanto foi importante na minha vida em termos de política, amizade, futebol, coragem, humor. Infelizmente nunca consegui falar com ele: Chirol e Lessa eu agradeci em vida, felizmente. O que me resta, querido João, é falar por aqui do jeito que o Lessa ensinava: “A crônica vai registrando, o cronista vai falando sozinho diante de todo mundo.”
Tantos anos depois, o PANORAMA é uma bandeirinha que tenta saudar a memória de gente como João Saldanha, gente que lutou – muito e literalmente – para que o Brasil inteiro e seu futebol em particular fossem melhores, mais dignos, mais humanos – João vestiu nossa camisa. Gostaria muito que dois sujeitos tivessem sido das nossas arquibancadas: ele e o Doutor Sócrates. Em 1986, Saldanha xingou muito o Magrão ao vivo pelo pênalti desperdiçado contra a França na Copa – e isso aqui faz todo sentido.
No próximo dia 03 de julho, Saldanha completaria 96 anos. Muito pouco para quem já faz parte da eternidade. Ele foi uma força, uma tempestade, um tufão que deixou marcas positivas por todos os lugares onde passou. Aqui pretendo ser uma bandeirinha dele. Ao menos tento. O PANORAMA ruge.
Paulo-Roberto Andel
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
http://www.releituras.com/jsaldanha_menu.asp
http://www.editoramultifoco.com.br/literatura-loja-detalhe.php?idLivro=1184&idProduto=1216
Boa crônica, Andel.
O João disse, se não me engano, que o melhor time que ele
tinha visto jogar, era o Flu tricampeão, em 1938.
Que tinha: Tim, Romeu, Hércules, Batatais e outras ‘feras’!
O João foi figura importante no jornalismo do séc.xx.
O cinema brasileiro ainda deve muitos filmes aos protagonistas que construíram a história do nosso futebol. O documentário JOÃO é uma demonstração de como o cinema pode cumprir este papel de difusão de momentos e personagens marcantes do nosso futebol. O Cinefoot vai seguiir abrindo portas para que estas histórias cheguem aos brasileiros.