Recordar é viver (por João Leonardo Medeiros)

João Leonardo

Depois da minha última coluna, com críticas contundentes e um evidente posicionamento político na oposição, pensei que deveria provar que não baseio minhas opiniões e minha posição política em nada mais do que a performance em campo. Seguem abaixo dois textos meus, escritos em 2012, nos quais exibo outra fleuma e apoio ostensivamente o time, inclusive lutando contra críticas injustas. São apenas três anos, Peter Siemsen era o presidente. Vocês não acharão, nos meus textos, nada além de uma apaixonada defesa do Fluminense, lá como cá. Não fui eu quem mudei. Mudou o Flu, para bem pior, em pouco tempo.

Libertadores: objeto de cobiça ou olho que cobiça? (de 24/05/2012)

Quando o Fluminense humilhou o Botafogo e conquistou o trigésimo primeiro título carioca de sua história, achei impertinente redigir uma crônica. Nenhum texto seria capaz de realçar a performance de nossos atletas nas duas partidas decisivas, uma performance irretocável e muito distante do que poderia jogar o adversário, com sua equipe infinitamente inferior. Aliás, também pela distância entre os dois times, e entre os dois clubes, preferi calar a pena, para não chutar cachorro morto, como se diz.

Ontem, como todos sabem, o Fluminense foi eliminado da Libertadores pelo Boca Juniors, num jogo decidido pelo adversário aos 45 minutos do segundo tempo. Também não queria escrever sobre o jogo, mas, no primeiro contato com o computador, fui literalmente possuído por uma fleuma espiritual que, após poucos minutos de inconsciência, legou-me o texto que escrevo abaixo.

Já disseram um dia que o Fluminense tem vocação para a eternidade. Também já ouvi dizer que o Fluminense não perde ou ganha; faz história. Ontem, infelizmente, fez história com uma derrota tão imerecida quanto a da perda da Libertadores de 2008. Nas duas ocasiões, a melhor equipe do torneio, não só na primeira fase, foi o Fluminense. Nas duas ocasiões, tivemos pela frente adversários duríssimos e jamais os deixamos com a impressão de que estavam diante de um Zé-Ninguém.

Agimos, em ambas as situações, como se quiséssemos dar uma resposta aos idiotas de plantão, desconhecedores da história, fanáticos por estatísticas superficiais, que exibem sua completa ignorância ao afirmar que o Fluminense não tem tradição em confrontos internacionais. Não ganhamos, é verdade, nem em 2008, nem agora, por uma simples razão: do alto de nossa nobreza, quisemos explicar ao mundo que o melhor nem sempre se sai vitorioso.

Aliás, o melhor não deixa de ser melhor porque perdeu em uma determinada ocasião. Deixa de ser melhor quando é sistematicamente derrotado, quando se torna incapaz de vencer quem quer que seja, quando não se lembra de um feito extraordinário de sua história. Acima de tudo, um gigante só se apequena quando acredita que uma derrota é suficiente para exterminá-lo.

Conosco, isso não é possível. Gigantes que somos, já descemos ao inferno há cerca de 15 anos e saímos dele ainda mais fortes, preparados para fazer história novamente. Nós já fomos provados e provamos, na prática, que somos capazes de resistir aos piores infortúnios que se poderia imaginar. Pergunto eu aos que acham sua história fantástica por ter se aproveitado de nossas fraquezas durante o período de crise: quantos de vocês resistiriam às provações que sofremos? Quantos voltariam ao topo? Quantos fariam crescer a torcida durante a crise, tanto em número, quanto em paixão?

Digo eu: se o Fluminense não ganhou as Libertadores de 2008 e de 2012, pior para a Libertadores. Se eu dirigisse a Conmebol, trataria de criar um expediente para gravar com urgência o nome do time que criou o futebol brasileiro na taça que hoje todos cobiçam, mas que ninguém fazia questão de conquistar 40 anos atrás. Hoje como antes, vale o seguinte: um campeonato que o Fluminense não ganhou ainda só pode ser um campeonato de arbitragens ruins, horários mal organizados, estádios sem condições, violência das torcidas, muitas equipes desqualificadas e deficitário para a maioria dos clubes. Ou seja, um campeonato sem élan suficiente para que a história nos leve a conquistá-lo.

A verdade é que a Libertadores não passa de um torneio Luiz Penido com sotaque esquisito. Não ganhamos ainda, mas eles se organizarão e enfim daremos a eles a honra de nos ter na sua galeria de campeões.

Os idiotas da subjetividade (de 04/11/2012)

Na filosofia, há duas posições extremas, igualmente problemáticas. De um lado, estão os que supervalorizam os fenômenos, os dados (presumidamente ou não) objetivos, o material empírico, como se diz, relegando tudo mais – inclusive a subjetividade – ao segundo (ou mesmo ao último) plano. De outro lado, estão os que supervalorizam os produtos da consciência, a ideia, relegando tudo mais – inclusive a objetividade – ao segundo (ou mesmo ao último) plano.

Estranho esse início de coluna sobre futebol, não fosse ela dirigida ao público tricolor, já acostumado com a crônica em alto nível. Nosso cronista maior, Nelson Rodrigues, por exemplo, ciente da falsa disjuntiva filosófica, reconheceu entre os analistas do esporte a aparente onipresença daqueles que, encantados por estatísticas, números, dados – ainda que totalmente irrelevantes (por exemplo, o número de passes laterais por partida) –, perdiam totalmente de vista o elemento efetivamente humano do jogo: o sentimento, a paixão, a tremedeira das pernas na hora do pênalti, a ira etc. Aos empiristas da crônica esportiva, Nelson Rodrigues atribuiu uma designação nada elegante, mas realmente precisa: idiotas da objetividade.

Nelson não viveu, entretanto, para deparar-se com uma nova figura a povoar, de modo quase ubíquo e asfixiante, a crônica esportiva. São aqueles que, a despeito de todos os indícios, de todas as inúmeras estatísticas relevantes (por exemplo, o saldo entre o número de gols a favor e contra numa mesma partida), insistem em reduzir o jogo a pura, livre e irrestrita subjetividade. Alega-se a influência decisiva da sensibilidade corrompida dos juízes, o humor favorável da entidade que organiza o torneio, as conjunções astrais incidindo sobre a psique dos jogadores, a encarnação de espíritos, a presença do Curupira nos jogos no Engenhão etc. Nelson não viu, mas nós estamos vendo o despontar de uma nova era: a era dos idiotas da subjetividade.

Pois são esses idiotas que têm analisado a campanha vitoriosa do Fluminense em 2012. A eles não importa que o Fluminense tenha sido campeão estadual humilhando ninguém menos que o grande Botafogo nas finais (ganhou uma de 4 a 1 e outra de 1 a 0). A esses idiotas não importa a belíssima campanha na Libertadores. Não importa que praticamente o mesmo time de agora tenha ganho o Brasileirão há menos de dois anos atrás. Não importa que seja o time em que jogam Cavalieri, Gum, Jean, Thiago Neves, Deco, Welligton Nem e Fred, para falar só dos jogadores totalmente incontestáveis. Mas eu poderia também falar de Euzébio (campeão brasileiro), Carlinhos (campeão brasileiro), Sóbis (bi da Libertadores e Mundial), Wagner (Copa do Brasil), Valência (seleção da Colômbia), entre tantos outros.

Como se não bastasse, não importa aos idiotas da subjetividade a campanha do Fluminense. Dos 33 de 38 jogos cumpridos até o dia em que escrevo essas linhas, dia 03 de novembro, o Fluminense ganhou 21, empatou 9 e perdeu apenas 3. Fez gol em 30 dos 33 jogos, de modo que, não surpreendentemente, forma o ataque mais positivo do campeonato. Não levou um gol sequer em 14 jogos, de modo que, não surpreendentemente, forma a defesa menos vazada do campeonato. Nos confrontos com os demais 19 clubes até aqui, 6 deles perderam as partidas do turno e do returno, número que pode subir se o Fluminense ainda ganhar São Paulo, Palmeiras, Sport e/ou Vasco. É importante atenção aqui: os três times (Náutico, Ponte Preta e Bahia) que fizeram um escândalo reclamando de arbitragem em um dos jogos contra o Fluminense perderam as duas partidas. Só 4 clubes não foram derrotados pelo Fluminense no campeonato, número que pode cair para 3 se ganharmos o Cruzeiro em casa.

Meus caros, isso não é uma campanha. É um massacre. O Fluminense tem o melhor ataque, a melhor defesa, o artilheiro do campeonato, 3 vitórias a mais que o segundo clube que mais venceu. Só falta agora pegar o troféu, eleger a musa do campeonato e o Sóbis como o bonitão do torneio. De resto, a gente já levou tudo. Haja subjetividade para esconder um assombro como esse.

Panorama Tricolor 

@PanoramaTri

Imagem: jole