Quem tem Gum, tem mesmo (por João Leonardo Medeiros)

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Não sou nem um pouco nostálgico. Diria, aliás, que sou o exato oposto. Lamentavelmente, tenho péssima memória sentimental e só consigo reconstituir cenas singulares de acontecimentos decisivos do passado, sem formar uma imagem de conjunto dos fatos e sensações. Certamente por isso, quase nunca trago para minhas colunas experiências passadas como torcedor do Fluminense, embora, devo confessar, esse seja um terreno em que minhas memórias são mais vivas do que em qualquer outro.

Essa semana, no entanto, sofri uma recaída nostálgica. Procurando na pasta Fluminense do meu computador recortes de jornais com matérias históricas sobre o clube (sim, eu as coleciono, principalmente em papel mesmo, mas também tenho alguma coisa em meio eletrônico), achei minhas crônicas de dez, quinze anos atrás. Naquela época, eu escrevia crônicas sem periodicidade definida, conforme mandava o coração, e divulgava numa lista de emails entre amigos. Ou seja, tratava-se de um hobby, de coisa da intimidade, e não de algo com o impacto ou responsabilidade de uma coluna pública.

Como todos sabem, se recuarmos quinze anos no tempo, encontramos o Fluminense recobrando a vida, depois do tormento da segunda metade da década de 1990. Diria eu que nossa história moderna começa ali naquele renascimento, com antecedentes pontuais (basicamente, a máquina dos 1970, a equipe de 1980 e a máquina dos 1980) na longa crise que arrasou o clube desde a década de 1970 até o caos dos 1990. O sentimento de renascimento tocava no coração de todo tricolor, que sabia que a torcida havia salvado o clube e podia recolocá-lo no eixo das conquistas (como de fato viria a fazer).

Esse foi o cenário do episódio que reprisei com nostalgia. O episódio em si são as crônicas que, para minha surpresa, falam de… futebol. Desde 2000 até 2012, meus textos falavam basicamente de heróis do campo: jogadores, treinadores, até de nossos roupeiros. Falavam das grandes jornadas e das grandes derrotas com a mesma paixão. Incensavam os jovens talentos (exageradamente, como fica claro olhando de hoje), forjavam mitos a partir de jogadores comuns. Magno, Roger, Toró, Lenny, Fernando Henrique, Pet, Arouca, Diego, Marcelo, Adriano Magrão, o outro Roger, Thiagos Silva e Neves, Washington, Gabriel, Mariano, Carlinhos, Fred, Conca e muitos outros são os personagens centrais dos textos, os heróis, sendo vilões os adversários de costume.

Fiquei com saudade desse tempo por uma razão muito simples. Desde 2013 para cá, não tenho comentado futebol. Como diriam os jornalistas, falta pauta dentro de campo, pelo simples fato de o Fluminense não ter jogado rigorosamente nada nesse período. O resultado, todos conhecem: pela primeira vez desde 2002, passamos infinitos três anos sem títulos. Contra minha vontade, portanto, tornei-me comentarista de bastidores, da montagem de elenco, das contratações desastradas em sua maioria, da inépcia do comando do futebol, da inabilidade de treinadores que se sucedem um ao outro sem fazer o time jogar.

Agora mesmo, veja o que acabou de acontecer. Comemoramos muito a vitória em uma partida horrorosa contra o poderoso… Avaí. Isso não é piada: o histórico tricolor das Laranjeiras comemorou uma vitória sobre o Avaí e tinha mesmo de comemorar. Meus amigos, ganhar do Avaí em casa para o Fluminense é como passear com cachorro obediente, como acalmar bebê no peito da mãe, como desligar o fogo depois de fervido o leite. Não dá para errar e, portanto, não há o que possa ser realmente celebrado. O resultado era tão evidente que a transmissão da TV começou o jogo mostrando o placar de 1×0 para a gente – vejam lá na imagem que antecede o texto.

Que fique bem claro: se estamos comemorando vitória em casa sobre o Avaí é porque a alma descolou do corpo. O ponto agora é trazê-la de volta.

Como? Já vou eu para os bastidores… troca o comando de cima a baixo, renova o elenco… SOCORRO, a mesma lenga-lenga de sempre. Posso evitá-la? Creio que sim, falando do Gum, o único personagem autêntico do drama tricolor do domingo.

Gum não é ótimo zagueiro, mas também não é horroroso. Tem atravessado sim uma fase horrorosa desde que se quebrou todo e, ao mesmo tempo, passou a ser orientado por amadores à beira do gramado. Certo é que ninguém compõe por duas vezes a zaga menos vazada do difícil campeonato brasileiro sem ter alguma noção do que fazer em campo, sem ter alguma contribuição para a equipe. E Gum certamente tem, ou tinha.

Mas o maior talento de Gum não está em sua capacidade de jogar futebol. Está sim na capacidade de expressar abertamente seus sentimentos. A alegria de Gum é imediatamente esculpida em suas feições, assim como a raiva, o desespero e até o desdém. Recentemente, Gum, como eu, se meteu a falar dos bastidores. Com isso, perdeu a expressão característica, o rosto de massa plástica preparado para revelar sensações. Ontem creio que tenha voltado ao normal. Hoje posso dizer com mais ou menos segurança: quem tem Gum, tem mesmo.

Não sei se o veremos de novo expressando sentimentos com a camisa do Flu, considerando o desgaste quase natural de quem já está no clube há sete anos ou trezentos jogos. Mas parece que, dessa vez, até para o bem de todos, Gum comporá o elenco de outro clube. Se assim for, registro aqui meu nostálgico agradecimento. Saiba Gum que sua imagem de alegria celebrando cabeçadas certeiras nos últimos minutos de partidas importantes, seu aviãozinho contra a Ponte Preta, sua cabeça toda enfaixada, seus recorrentes choros de desabafo são parte da história sentimental do Fluminense, mesmo desse desmemoriado tricolor. Por tudo isso, muito obrigado.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: jlm

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4 Comments

  1. Belíssimo texto. Tive o privilégio de receber alguns dos seus primeiros, ainda por email, como bem lembra o autor.

    Gum será a liderança do “time B” que enfrentará seus oponentes no carioca, enquanto nosso plantel principal torneia por campos mais salubres.

    E, por isso mesmo, será ainda peça valiosa do nosso laranjal.

  2. Que bom que existam Tricolores que vejam o Gum com seus olhos.
    Adorei seu texto!
    “Quem tem Gum, tem mesmo” é perfeito!
    Às vezes torcedor é mto cruel.

    ST

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