Quando meu pai disse adeus (por Paulo-Roberto Andel)

eu e o helio

Por volta de oito horas da noite, meu pai veio com sua cadeira de rodas até a pequena sala de nossa casa e me disse algumas coisas.

Primeiro, devolver R$ 300,00 que eu lhe emprestara uma semana antes. Depois, agradecer o cachorro quente que eu havia feito. E balbuciou algumas palavras sobre o jogo de mais tarde, a decisão entre Fluminense e São Paulo nas quartas de final da Libertadores 2008, 21 de maio.

Voltou para o quarto lentamente, já na expectativa do jogão.

Não sabíamos, mas eram as famosas últimas palavras.

Três minutos depois, estava irremediavelmente morto.

Foi o tempo de encostar a cadeira na cama, movimentar-se e assistir ao ballet da morte.

Corri, tentei os primeiros socorros, mas foi tudo absolutamente em vão. O homem que me fez Fluminense estava morto. Sem dor, em silêncio, sem palavras. Deitou e faleceu.

Naquela Libertadores, eu fiz o que não tinha feito nos 30 anos anteriores. Meu pai estava feliz com o pacote de TV para ver todas as partidas que queria.

Não fui ao Maracanã num momento dos mais óbvios. Acontece o que tem que acontecer. A pessoa é para o que nasce.

Gostava de ouvi-lo de longe, ele cornetava e cornetava com toda razão: quem viu o Mundial de 1952, Castilho, Pinheiro, Didi, Waldo, Flávio, Samarone e todos os grandes títulos entre os anos 50 e 80 do século passado não podia se contentar com pouca coisa.

Uma hora antes de Fluminense versus São Paulo, a Libertadores e o mundo haviam acabado para mim. Mundo que já não era bom desde a perda da minha amada mãe um ano antes, os dois ainda com muito a fazer. E que anda cada vez pior, com a violência, o egoísmo, a ingratidão e vários outros comportamentos que estão em todos os lugares e que, infelizmente, também existem no nosso Clube (aqui utilizo o pronome possessivo por direito, por mais que isso incomode supostos herdeiros das capitanias hereditárias tricolores).

Aos poucos, a casa começou a receber amigos solidários. Já morto, meu pai teve o jogo narrado a seu lado. Deixei a televisão ligada. As horas de agonia à espera dos agentes funerários.

Na sala, meu pequeno mundo desabado e um milhão de cabeças rolando caminhos de tensão no Maracanã. Não tinha condições de acompanhar absolutamente nada. O primeiro amigo que me ajudou em casa foi o velho Fred de guerra, Frederico Kheirallah.

Pensei em muitas coisas. Nos jogos da infância. Os tempos da Máquina onde eu era jogado para cima. A entressafra dolorosa de 1979. O timaço de 1980. O grande tricampeão. Os astronautas vendiam refrigerante no Maracanã. O Seu Armando, o Zezé e o Antonio falavam do Flu na televisão. Aquela densa nuvem de pó de arroz a cada entrada do time em campo, como se estivéssemos voando, atravessando as nuvens.

Eliane, linda demais nas cadeiras azuis. Picolé da Tia Helena. Influente! Fôrça! Os senhores levavam suas almofadas para usar como assento no concreto eterno do Maracanã. Na geral, as figuraças, a beleza dos nossos torcedores mais pobres, a emoção de sentir um jogo sem vê-lo direito. Vendedores de laranjas, de pipas. O Brasil engolia calado uma ditadura, enquanto o futebol dos domingos era um dos seus únicos portos de libertação temporária.

Sem dar uma palavra, meu pai me levou a Flamengo 1 x 4 Palmeiras (um dos maiores jogos que já vi) e Flamengo 3 x 0 Campo Grande para que eu me divertisse com um jogo de futebol. Claro, sentamos com os alviverdes e alvinegros. Isso dá o tom da coisa.

Pensei em sua vida.

Perdeu os pais no intervalo de uma semana, teve a herança dilapidada pelos familiares, foi criado em colégio interno nas imediações da avenida Giovanni Gronchi, o que lhe fez um torcedor do São Paulo na infância. Veio para o Rio, nunca mais quis saber da família, batalhou, teve lojas, perdeu tudo, voltou a ser um empregado e se manteve com toda a dignidade até os 55 anos de idade, quando uma paralisia dos joelhos o aposentou, mas nem de longe o paralisou: passou a ser um homem do lar, cuidando da casa, lavando, passando, cozinhando, ajudando minha mãe nas tarefas mesmo com as claras dificuldades de ser um cadeirante. Lá atrás, também um preso pela ditadura militar, assim como meu tio (que teve sorte pior: ficou surdo de um ouvido com as torturas no DOPS, foi “convidado” a sair do Brasil em 1970 e nunca mais voltou).

Dentro deste cenário carioca que dá um livro, passou a ser um apaixonado torcedor do Fluminense antes da adolescência, mas nunca deixou de admirar o São Paulo da infância: “É a mesma coisa de você estar ao lado da mulher que ama, mas não deixar de respeitar a bela primeira namorada, cada uma dentro de seu espaço”. Quis a ironia do destino que falecesse justamente no dia do maior confronto da história entre os dois times que alimentaram seu coração.

O Fluminense mais uma vez desafiou o impossível naquele 21 de maio, enganou a morte e Washington fez um dos gols que escrevem para sempre a história das Laranjeiras. Uma noite fantástica para as nossas cores. Soube do gol pelos amigos em casa. Diante da insuportável dor ao perder quem se ama, vi naquele lance derradeiro um involuntário réquiem do Coração Valente para meu querido pai – ou voluntário mesmo para os que cultuam os deuses do futebol.

Minutos depois do Rio explodir com o Tricolor nas semifinais da Libertadores, após vencer o tricampeão mundial, os agentes funerários chegaram em minha casa. Levaram o corpo de meu pai para a capela do cemitério de São João Baptista.

Uma da manhã, éramos eu e ele. Silêncio. Dor. O caixão na mesa da capela. Vim embora para casa. O enterro foi horas depois, na manhã do feriado. A cidade vazia. As bancas de jornais cheias de manchetes contrariadas. O Fluminense foi mais uma vez a mosca na sopa.

Dias depois, assisti o tape do jogo pela primeira vez, gesto que repeti muitas vezes ao longo destes sete anos. Parece que foi ontem. Ainda não acabou. Mais do que ninguém, eu choro quando revejo o gol do Coração Valente – para mim não foi somente um gol, mas uma homenagem ao Helio, o bálsamo para um dos dois piores dias de toda a minha vida.

O gol de Washington naquela noite valeu por vários títulos.

Ninguém foi mais campeão daquela Libertadores do que o Fluminense, mesmo sem o título. Nenhuma disputa perdida dos pênaltis há de apagar aquela campanha fantástica, mesmo com os erros cometidos.

Em 2008, eu já tinha muitos anos na literatura, mas não especificamente na da bola, que havia iniciado em 2006. Pensava em escrever um livro, mas não sobre futebol – era algo que eu tratava apenas como um desabafo diante das aberrações de parte da imprensa esportiva. Sete anos depois, estou às vésperas de lançar meu sexto livro sobre o apaixonante jogo dos jogos, conquistei vários amigos e os que se supõem meus inimigos perdem seu tempo infrutiferamente, porque não merecem qualquer réplica ou atenção.

Dentro da modestíssima parte que me cabia, contrariando alguns recalcados, coloquei algumas estrelinhas no nome do Fluminense, com pleno orgulho por não ter precisado de um centavo do Clube para tal – o que nem todos os prepotentes da área podem dizer. E agradeço a você por estar aqui e acreditar nesta ideia do PANORAMA, valorizada por uma turma, também desvalorizada por certas pessoas imponentes de Álvaro Chaves (que, aí sim, recebem a réplica em forma de singelo desprezo).

Talvez tudo o que foi publicado aqui desde 2012 tenha nascido no dia em que meu pai disse adeus, aquele em que seus amores iam se enfrentar para desenhar uma das mais belas – e significativas -, aquarelas da história do futebol brasileiro. É uma pena que ele não esteja mais por estas bandas – seria um excelente cronista e comentarista; no entanto, para desespero de alguns, eu sobrevivi para escrever um pedacinho da história. Para sorte de alguns oportunistas também: se estivesse com saúde e soubesse que querem destruir um livro sobre o Fluminense, o caldo ia ferver…

Meu tio também não está mais por aqui. Nunca conversamos sobre futebol, nunca soube do seu time de coração e sequer se havia um. A ditadura não deixou. Suicidou-se no exílio.

Meu pai descansa em paz, eu continuo um soldado de guerra com meu teclado, alguma imaginação e muita vivência que nenhum mauricinho compra.

Sete anos depois, tudo está vivo demais. Os corações valentes pulsam a mil.

NOTA 1: Um médico assassinado a facadas. Uma criança assassinada a tiros de fuzil. Uma menina estuprada, morta e jogada num valão. Inoperância do Estado. Hipocrisia e insensatez da sociedade. Ódio, rancor, inveja, destruição, egoísmo. Estupidez. O último a sair apague a luz da base interplanetária.

NOTA 2: Os amigos e leitores desta coluna provavelmente esperavam uma análise mais longa sobre a saída do treinador Ricardo Drubscky.

Diante do incessante Febeapá das Laranjeiras, homenagear a memória de meu pai foi mais importante.

Deixo aqui o link da minha análise feita há pouco menos de dois meses: clique em Drub

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: lourdes andel/ guis saint-roman

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10 Comments

  1. Cara!
    Conseguiu me fazer voltar sete anos atrás e me ver ao lado do meu pai, ali no nosso saudoso maracanã. Estamos com vida e tenho naquele jogo, a maior lembrança e mais emocionante ao lado do meu pai.

    Paulo-Roberto Andel​, vc sabe me fazer chorar como ninguém como seus textos.

    Pra ti, aquele jogo teve um significado oposto do meu, mas estávamos ao lado dos homens de nossas vidas.

    O gol foi para o seu Papai!

    Obrigada pelo belo texto.

  2. Emocionante demais. Literatura pura. Para os fortes.

  3. Parabéns pelo texto, me fez rever pela milionessima vez os melhores momentos desta partida inesquecivel

  4. Admirável homenagem, caro Andel. Vamos pensar que ele apenas foi se unir a outros grandes e reforçar o time lá de cima.

    Um grande abraço !

  5. Ao terminar de ler, rolei a barra e revi o gol antológico.
    Sobre o jogo não comentarei, já falamos inúmeras vezes sobre, seu pai é o foco aqui. Repetirei o que Nelson Rodrigues filho falou sobre nosso grande mestre quando faleceu.

    “Que passagem linda”.

  6. Caro, amigo! Este jogo também se relaciona a meu pai. Não fui ao estádio para estar também com ele, porém em situação diferente. Ainda posso estar com ele hoje, comemorando seu aniversário neste dia. Belo texto, o que não é novidade para este grande escritor. Abraço fraterno.

  7. Embora você não acredite, tá no céu, muito melhor que a gente aqui, vendo Castilho, Telê e o casal 20 jogar. Grande abraço!

  8. Sensacional, caro Andel!
    Sobre esta partida, digo isso: ‘um dos jogos da minha vida’!
    Abraço, de um grande fã seu. ST

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