Os guerreiros do Flu mundo afora (por Luiz Alberto Couceiro)

(Essa coluna foi escrita quando eu estava trabalhando na SUNY, no final de 2011 e início de 2012. Não imaginava que veria, novamente, em três anos o Fluminense campeão brasileiro e, depois de 1984, muito menos conquistar um Carioca no mesmo ano. Relendo o material, excluído da internet, para republicá-lo no Panorama Tricolor, fazendo aqui e acolá algumas atualizações, deparei-me com essa coluna. Ela foi postada no dia 16 de fevereiro de 2012 e, penso, pode ajudar a muitos dos torcedores mais abalados afetivamente pelos nossos três últimos resultados a encontrar mais elementos para produzir reflexões sobre o nosso Fluminense de agora.)

Procurando melhorar meu inglês, já confundindo palavras, errando grafias, e destrofagando minhas estruturas de pensamento… Na minha primeira aula de conversação na State University of New York (SUNY), localizada na cidade de Binghamton, onde estou trabalhando até meados de março, um senhor russo me perguntou, ao saber que era do Rio, para qual time de futebol eu torço. Respondi que sou Fluminense. Ele, logo, logo mudou suas feições, até então lânguidas: subiu as sobrancelhas, arregalou os olhos, ajeitou os óculos escuros de lentes meio amarelas – muito estranhos, por sinal, para meus conhecimentos estéticos – e disse que “meu time é ótimo, muito forte, campeão brasileiro, que estava na Taça Libertadores e que tinha Fred e, principalmente, Deco! Tem tudo pra continuar crescendo, jogando campeonatos internacionais e ganhando outros no Brasil.” Engrenei com ele conversa sobre o Aranha Negra, o time da Copa de 1982 e outros times e jogadores internacionais. Vi que o “camarada” conhece futebol a três por dois!

Na turma, ninguém sabe ao certo o que esse misterioso homem, que disse ter sido soldado no Exército Vermelho, com tatuagens lembrando o filme “Senhores do Crime” nas mãos e nos braços, jogado futebol sei lá onde em seu país por 25 anos, trabalhado em multi-nacionais com programação e equipamentos de computadores, usando terno e gravata escuros, faz ao certo aqui no interior de New York. Com tudo isso, o que interessa a mim, nesse momento, é frisar que ele tem imagens positivas do Flu.

Beleza, se eu fosse o leitor estaria me perguntando: legal essa coisa toda do russo misterioso, com pinta de araponga da KGB aposentado, mas… e daí? É uma pequena história muito boa para pensar o momento atual em que vivemos o Fluminense, e as possibilidades de metáfora que as pessoas andam fazendo mundo afora em suas histórias de vida com alguns lances de nosso time do coração.

O Flu foi a finais seguidas em vários torneios. Pena que não vencemos algumas, e que ótimo que ganhamos a Copa do Brasil e o Brasileirão. Ter chegado às decisões de campeonatos com transmissão internacional, isto é, Libertadores e Sul-Americana, teve efeitos interessantes para nossas imagens além-rua Álvaro Chaves com Pinheiro Machado. Aqui nos EUA, pela minha profissão e gosto, converso com pessoas de várias partes do mundo e classes sociais, permanentemente. Muitas delas são amantes do futebol e o que mais me falam não são sobre “as coisas planejadas” pelos marqueteiros de plantão do futebol internacional. Nada disso. Falam sobre o inesperado, aquilo que poucos acreditavam ocorrer. Mais ou menos a receita de filmes que fazem sucesso de bilheteria em Hollywood.

O que essas pessoas, como o senhor russo, mais falam do Flu é do “Time de Guerreiros”! Elas nos conhecem por causa deles! Para se referir ao feito daquela inédita arrancada, não canso de escutar expressões de pessoas que não se conhecem, tais como “coisa de cinema”, “situação emocionante de superação”, “aula de força de vontade”. Frases prontas, sim, mas que funcionam em muitos contextos onde afetivamente há alguma demanda por exemplos de superação, e não de títulos ganhos por times burocráticos (coisas também importantes). Aqui, muitos falam para suas filhas sobre isso em momentos de perdas, luto, notas baixas nas escolas, falta de emprego de familiares e vizinhos – o que não é difícil de encontrar na enorme classe média estadunidense, com educação de qualidade – aquela mesma em estado de extinção no Brasil. Andando por cidades do interior do estado de New York, facilmente percebi uma clara divisão entre a pujança de Manhattan e a pobreza dos trayllers que, de casas de passeio ambulantes, viraram residências fixas. São verdadeiros estacionamentos sinistros, com famílias inteiras golpeadas na sua pouca estima de si.

A história do time que era visto e entendido por “especialistas” que só conhecem futebol de coletivas, jabás diversos, e salas com ar-condicionado, serve de exemplo para muitas meninas que agora estão materialmente pobres. Meninas? Como assim? Aqui nos EUA, o futebol é muito popular, sim, mas não é esporte nacional. Ele é o mais praticado nacionalmente, porque se trata de uma política pública e particular de incentivo a maior prática esportiva feminina. Campos de futebol, em comparação com quadras de hóquei no gelo, basquete, e campos de beisebol e futebol americano, são bem mais baratos de serem mantidos pelas escolas e universidades. Ontem mesmo vi uma partida de golzinho no ensolarado, mesmo que frio, atípico inverno de NY, aqui na SUNY. Meninos e meninas, juntos, jogando pra valer, mas com alegria, misturavam-se em dois times bem montados, organizados, com roupas apropriadas, tentando fazer gols no meio dos cones que serviam de mini-balizas.

Pra ser esporte nacional aqui tem que se ter memória de títulos, torcedores diversos, identidade do clube que pode hoje estar numa cidade, e amanhã em outra – como os Raiders e os Rams, no futebol americano. São redes e mais redes de contatos comerciais e outros mais que configuram as identidades dos times e suas torcidas, ao longo de anos, décadas. É possível escutar uma pessoa dizer que “é fã do time tal”, porque isso tem significado afetivo para além das palavras, “do uso da razão”, como se essas duas coisas estivessem separadas nos mundos dos torcedores. Futebol, soccer, ainda não tem nada disso nos EUA.

Para essas meninas que adoram futebol, aqui um símbolo de feminilidade esportiva, a história do Time de Guerreiros também é referência de superação, de metáfora para suas vidas. Elas vêm no Youtube vídeos da festa da pequena e abnegada torcida tricolor, no falecido Maracanã ainda vivo, cantando e dançando na chuva, empurrando o time contra o Atlético-MG. Assistem aos gols de Fred contra o Palmeiras, e percebem o estádio com recorde de público, num dia de muito calor. Sabem que ele estava voltando de contusão. Adoram a plasticidade da jogada de Conca que resultou na não menos plástica encoberta que Maicon deu no goleiro do Atlético-PR, em pleno Maracanã que ainda suspirava com o balançar das redes. E digo a essas pessoas que eu estava lá, com minha esposa e um amigo, atrás daquele gol, nas arquibancadas, vibrando, pulando, cantando e dançando.

Sabem que fomos campeões depois, no ano seguinte. O senhor russo também sabe. Mas eles todos insistem nessa história de superação, e afirmam, emocionados, que ali começou o título do ano seguinte. Ele me disse: pouco importa 1994, o que eu gosto de ver no Youtube é a seleção brasileira de 1982! Fiquei o dia inteiro vendo as jogadas do Sócrates, em dezembro, no dia em que ele morreu!

Que o esporte está muito comercializado, a NBA inclusive, para eles que viram Magic Johnson, Larry Bird, Clyde Drexler, e, claro, Michael Jordan, só pra falar de alguns poucos, as meninas sabem. Há muitas repetições de jogadas desses craques do basquete nos intervalos das transmissões dos jogos. Mas também há a renovação alimentada pelas universidades, que revelam jogadores que se tornam ídolos em seus estados, como Lin, armador do New York Knicks, e o sensacional James, do Miami Heat. Isso não é problema por aqui. Tentei ir a um jogo dos Knicks, no Madison Square Garden, e tive que me inscrever numa fila de espera de alguém que queira vender seu ingresso. Claro que dificilmente conseguirei… Igual ao Engenhão, né? Aliás, um pouco pior…

Temos que ter muito carinho com o Time de Guerreiros, assim como os clubes daqui da NBA têm com os grandes times e jogadores de seu passado, e saber que, pela tecnologia das comunicações via satélite, que ele marcou pessoas no mundo inteiro. Sinto-me na tarefa de levar isso aos tricolores que venham a ler essa coluna de hoje. Eu mesmo penso que ainda não tenho a dimensão do que nosso time pode servir para dar sentido positivo a tantas pessoas de partes do mundo que eu pouco pensava que se quer o conhecessem. Aquele time que nós acreditamos e ajudamos, das arquibancadas e das telas de computador, dos celulares, das televisões de casa e dos bares e restaurantes, das redes sociais, a construir e dar legitimidade. Todos somos o Time de Guerreiros, porque sem isso ele cai no esquecimento e, aí, meus amigos, deixa de existir.

Ele foi fruto da beleza das coisas “não planejadas”. Contudo, é importante cobrar dos responsáveis no clube que não percam as perspectivas de narrativa que o feito da arrancada oferece. São muitos os elementos! Memória não vem pronta, é construída, é feita no plural, embora possa ter os mesmos elementos centrais nas mais diversas versões. É mais importante ainda que nós todos, cada um ao seu modo, também a cultivemos, espalhando nossas narrativas sobre os Guerreiros, revendo alguns dos momentos, montando documentários, filmes, exposições, escrevendo, publicando e republicando livros e mais livros, crônicas e mais crônicas. Explicar, cada um com sua versão, com seu olhar, com aquilo que mais lhe tocou, para um mar de gente o que aquele time e a torcida foram capazes de fazer, como ele foi montado, os descaminhos até a reta final que não tínhamos certeza de que de fato conseguiríamos; tão-somente acreditamos, investimos nisso e fomos felizes. Seremos felizes, sempre, com o que ocorreu. Isso é investir no cultivo do afeto pelo Flu, mundo afora, aproveitando as informações de como somos vistos em várias partes desse enorme planeta que ama futebol.

Luiz Alberto Couceiro

Panorama Tricolor

@PanoramaTri