O século do Fla-Flu (por Paulo-Roberto Andel)

O Fluminense, o Flamengo e um espelho (05/07/2012)

Você não é meu inimigo. Não, você não é meu inimigo. Não foi nem nunca será. Deixemos de lado as rusgas daquele ano tão distante, quando éramos unha e carne até que o ventre fosse rasgado e parisse a história de nossos dias. Foi um desentendimento que, ingenuamente, trabalhou em prol da posteridade. Caminhamos e muito por uma longa estrada, você de um jeito e eu de outro. Não, não demos as mãos em tom fraternal ou de namoro, pois não faria sentido algum; quando nos tocamos, foi em impecáveis quedas-de-braço, palma contra palma e, nem sempre, quem venceu num dia foi melhor do que o derrotado, tudo para alimentar o calor da disputa. Sim, eu sou melhor do que você. Não, não sou pior do que você. Não, não sou igual a você. Temos nossas características próprias, nossas nuances, os pequenos e grandes detalhes que nos distinguem à primeira vista: cores, gestos, sonhos, atos, maneiras. Não somos irmãos siameses, mas nosso sangue é comum, temos mais semelhanças do que parece ser plausível. Nossa verdadeira vocação é de adversários: vivemos de confronto, de oposição, nossas arquibancadas são diferentes. Um é especial no somatório das lutas, o outro é especial quando as lutas valem medalha de ouro. Ambos temos multidões, verdadeiros continentes de gente que não cabe no estádio. A opulência de oitenta e nove minutos contra a maestria do minuto final. Um é o maior do mundo, o outro é o maior da cidade, os dois são da mesma cidade e essa saudável contradição remete a boas reflexões: como ser o maior do mundo sem dominar a própria cidade? Como ser o maior da cidade onde há o maior do mundo? Não, não é hora de indagações e questionamentos profundos ou rasos, mas sim o momento de celebrar, comemorar, experimentar a vida. Olhar para trás e pensar em tudo o que passou. Dos pequenos teatros da Gávea e da rua Guanabara, chegamos ao garbo de São Januário e depois ao colosso do Maracanã. Agora temos a singeleza do Engenhão. Quantos riram, choraram, viveram e morreram por conta das nossas cores? Quantos experimentaram os mesmos sentimentos, sendo humílimos ou milionários, velhos e moços, todas as cores de uma mesma raça, quando nossas cores se encontraram na esperança em verde num gramado? Quantos trouxeram admiráveis lembranças de nossos encontros em suas infâncias e hoje, perto da despedida, relembram cada passo como se fosse o melhor de suas vidas? Por pior que fosse, sempre reconhecemos a beleza que vimos do outro lado da arquibancada quando gritaram o gol. E o nosso gol a seguir teve um sabor especial. Muitas vezes, o grená esmurrou o vermelho enquanto o preto chutou o verde, tudo sob o olhar atento do braço. E brigamos, brigamos muito. E choramos e sofremos. E rimos e fomos felizes. Lá se foram cem anos e vivemos com toda intensidade, um ardor que poucos sentimentos explicam melhor do que o de um jogo de futebol. Quis o destino que Nelson Rodrigues fosse irmão de Mário Filho e isso, sem dúvida, quer explicar algo hermético e profundo que até hoje não soubemos decifrar. Somos sangue do mesmo sangue e, a cada encontro nosso, algo diferente parece inundar as retinas de quem olha o outro lado, as outras cores, os outros brados – nossas procissões são diferentes, específicas mas, de algum modo, rumam para o mesmo destino. Houve um dia em que as multidões despertaram e nunca mais cerraram as pálpebras. Houve um dia em que nosso encontro virou chacota num jornal, mas esta mesma chacota se tornou nossa marca eterna: Fla-Flu, uma corruptela que ganhou o mundo. Sim, eu sou teu adversário e quero te vencer sempre. Sim, você é uma pedra firme no meu caminho. Sim, eu sempre te provocarei mesmo que tudo seja apenas passageiro e desimportante, pois a importância cabe à nossa construção diária. Não, eu não existo sem você. Não, eu não existo sem você. E agora, te dizer “Obrigado por tudo” significa trocar o mais fraterno dos abraços, pensar em cem anos de saudade e num milênio que nos espera à frente. Obrigado, muito obrigado por tudo, muito obrigado por existir e também ser protagonista desta história. Significa agradecer a mim mesmo. Sem você, eu teria um desgosto profundo e isso ofuscaria o grande amor que tenho pelo querido pavilhão. Hoje, não há mais dúvidas: nós somos a história. Um dia, cem anos serão dois mil milênios. Só o Fla-Flu regenera, só o Fla-Flu revigora, só o Fla-Flu veio antes do nada para chegar até muito, mas muito além do infinito.

Paulo-Roberto Andel

Panorama Tricolor/ FluNews

@PanoramaTri

Contato: Vitor Franklin

5 Comments

  1. BOA TARDE MEU NOBRE AMIGO, COMO SEMPRE UM TEXTO FANTÁSTICO IRMÃO. PARABÉNS .ST FLUII

  2. Amigo Paulo,
    Desta vez você se superou. Além do contexto histórico muito bem colocado, a emoção refletida em letras invadem nosso coração e ativam nossa memória, num exercício salutar de recordação de grandes epopéias vividas no Fla x Flu.

  3. Que beleza, Andel!
    É puro JAZZ!
    Parabéns pelo texto!
    Braxxxx! SSTT4!!!!

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