Quando eu estava prestes a completar dez anos de idade, nasceu o que seria posteriormente a minha primeira lembrança de torcer para o Brasil numa Copa do Mundo. As pessoas iam e vinham das ruas de Copacabana, especialmente Siqueira Campos e Figueiredo Magalhães. Compras e cervejas e samba, festas. Corria o ano de 1978. A Seleção eu já conhecia, claro, mas por jogos de botão e pelo álbum de figurinhas lá de casa que meu pai tinha feito. Eu gostava do Piazza porque o nome era diferente, além do Félix por causa do Fluminense. Os grandes tricampeões de 1970.
Em minha pequena e modesta casa, meu pai espiava os momentos anteriores a Brasil x Argentina, imaginem. As imagens do jogo não são muito claras em minha memória, o que é curioso; já era um torcedor mirim dedicado, lia cadernos esportivos, chegara a pegar o que havia sobrado da crônica clássica de futebol nos jornais, Nelson Rodrigues inclusive. O que sei mesmo é que na hora do intervalo da partida minha mãe me pediu que fosse até a casa da diretora da escola onde eu estudava… para pagar uma mensalidade possivelmente atrasada. Pensando nisso agora, fico emocionado em lembrar como minha mãe era tão preocupada em honrar compromissos, ainda mais numa hora daquelas: o Brasil jogando contra a Argentina, o mundo olhando para todos nós e ela, tão amada e querida, preocupada em pagar uma dívida. Deu o intervalo, ela pediu para que eu fosse cumprir a tarefa. Coisa rápida, a dona da escola morava na Ladeira dos Tabajaras, cinco minutos a pé. Pus o dinheiro no bolso e desci.
Bastava atravessar a rua Siqueira Campos, caminhar uns cinquenta metros até o pé da Ladeira, num boteco, virar, subir dez metros e chegar ao prédio. Nesse trajeto, aí sim, lembro de uma imagem muito bonita: havia uma enorme chuva de papel picado caindo dos prédios, fazendo desenhos no ar que a gente só via em caleidoscópios. Como todo mundo estava em bares ou em casa, fui provavelmente a única pessoa a ver aquele espetáculo no ar na condição de caminhante. Talvez tenha durado uns dez segundos, mas a imagem dos papéis ao vento e os fogos pipocando no céu é inesquecível. Nunca tinha visto nada parecido exceto nas festas de fim de ano na praia. Cheguei ao prédio, interfonei para a dona, subi, ela me atendeu com a eterna cara de poucos amigos como se receber dinheiro fosse um favor, pegou as muitas notas daqueles tempos de inflação, peguei o recibo e voltei para casa.
Meus pés ainda eram pequenos, eu usava chinelos, foi uma delícia pisar no mar de papel jogado nas calçadas. Aquilo me fazia sonhar em futuros jogos no Maracanã, onde meu pai já me levava frequentemente. Logo voltei para casa, o jogo recomeçou, meu pai sério com os olhos fixos na televisão, eu também olhava e mexia nos meus botões de jogo que ficavam numa caixinha de madeira – lá estão até hoje – comprados por minha mãe de um velhinho, anos antes, na rua Ministro Viveiros de Castro.
Quando o jogo acabou, meu pai não esboçou nenhuma reação, exceto manter a seriedade. Em meu pensamento de menino, logo entendi que jogo sem gol deixava os pais chateados. Fui jogar botão sozinho em meu estádio de cartolina, eu ainda não tinha um Estrelão.
Não me passa pela cabeça nada dramático dos meus sentimentos iniciais em termos da Seleção Brasileira, exceto pelo espanto das pessoas a seguir com a goleada argentina sobre os peruanos, o que significou o fim da nossa Copa de 1978. Pouco tempo depois, eu já era um pequeno torcedor feito, intimamente acostumado com o Maracanã e, tempos mais tarde, o Brasil ia ter um esquadrão de Telê Santana que assombraria o mundo – só que, aí sim, eu iria entender o que é a dor do Brasil por conta de um velório do futebol. E muito, muito tempo depois, as grandes festas de rua por dia nas ocasiões do tetra e do penta.
Meu espírito da Copa? Um humilde garoto de chinelos olhando com total encantamento as nuvens espessas de papel picado navegando por cima das calçadas. A Copa chegou, a Copa é hoje e, nos próximos dias, provavelmente me emocionarei muito ao ver nas ruas algum garoto como o que eu fui um dia. Vivemos num mundo de dificuldade, tristeza, egoísmo, dor, indiferença. A Copa talvez ainda sirva para isso: mostrar ao mundo todo que podemos ser humanos de verdade. Emocionar, sentir-se emocionado, rir, chorar, viver, tudo por conta de algo que às vezes parece tão banal, mas é importante demais – afinal, o que mais nos leva aos melhores momentos da nossa infância?
Tanta gente falava daquela Copa de 1950, muitos diziam que o Brasil nunca mais teria outra. Cresci ouvindo isso. Agora, diante de tal momento, minhas dores no corpo, meus sofrimentos e tristezas ficam de lado. Serão dias e dias de jogos. Uns serão maravilhosos e entrarão para a história. Outros serão esquecidos. As pessoas irão viver em torno do futebol. Seria um mundo ideal se pudesse ser mantido. A realidade é outra: já, já, tudo passa e quatro anos evaporam. Mas a hora é de festa, de alegria, de vivenciar um momento único, mesmo que os ingressos tenham sido quase que exclusivamente para certa elite muitas vezes ignara e descompromissada. Sim, a voz das ruas precisa ser gritada e ouvida, mas a Copa precisa ser vivenciada.
É o futebol do mundo. Talvez tenha sido para isso que vivi. Não sei dizer ao certo. Mas é bom.
A Copa do Mundo é hoje. Estamos em casa.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
Imagem: figurinhas de 1970 google
Estou aqui emocionado, lendo sua cronica e vendo também uma belíssima coletânea de imagens na TV do nosso povão recebendo as delegações estrangeiras.
Esse é o nosso BRASIl e tenho o maior orgulho de ser brasileiro e vivenciar em nossa casa esse Espírito da Copa que voce brilhantemente nos lembrou.
Eu tenho claro em minha mente, momentos marcantes de todas as nossas conquistas, sendo a primeira aos 7 anos em 1958, vendo o meu pai, tricolor feliz da vida, ouvindo a final Brasil x Suécia pelo…