O beijo na trave (por Walace Cestari)

Quarta-feira. Já era noite. Passava dos trinta e cinco minutos de um primeiro tempo tenso. Placar virgem. Zeros insistentes no placar. Nas terras andinas, a temperatura ambiente caía, o condor repousava, um estádio inteiro da cidade do interior esperava o lance capital.

A bola já havia revelado seus caprichos em eventos anteriores. Fugidia, escapou da defesa do arqueiro chileno e fez troça ao encontrar os pés de Thiago Neves. O meia-atacante assustou-se com a travessura da senhora do jogo, que conseguira iludir dois atletas de times adversários em única jogada.

Em outra ocasião, ela saiu de um cruzamento de Carlinhos e cismou de ir-se em direção ao gol. Pregou uma peça no guardião da meta andina. Tripudiou das esperanças tricolores em todo o estádio, que agora cabia na tela da tevê. Estava revelada a personalidade da bola: era travessa, buliçosa e endiabrada.

E então, dos pés do sempre cuidadoso Jean, ela vai viajante, cruzando a área, para repousar, como em um pedestal, nas chuteiras de Thiago Neves. Ah, que visão se descortinava… Todo um campo de batalha aberto, sem soldado inimigo… E, logo ali, o alvo, a baliza!

Uma fração de segundo, o suficiente para o Dez amansar o ímpeto da bola e ordená-la ao passeio rasteiro pela área de meta adversária, vencendo o goleiro pela velocidade e oferecendo-se por completa, tal mulher apaixonada, aos pés de nosso Pequeno Fantástico.

Mas o amor é, no seu âmago, a tragédia. Com a confiança dos enamorados, o garoto Nem cortejou a bola, fez seu pé direito beijá-la carinhosamente. Não, amigos, não se pode deixar de usar o que há de melhor no amor! Destreza que sempre foi-lhe estranha. O canhoto envezado diante da bola caprichosa era o prenúncio de que algo ocorreria. E, eis que então, a imagem de Sobrenatural de Almeida surge encostada à trave.

E a bola, adúltera, insidiosamente atende ao chamado do fantasma que não cansa de nos assombrar. Um atropelamento brutal em nosso caminho. Wellington, de joelhos, agarrado às redes, perguntava aos céus as razões de tamanha tortura. Como em um asfalto suburbano, em ato – dessa vez não misericordioso, mas perverso – o beijo entre a bola e a trave é presenciado por todos. Galhofa sobre o Pequeno Fantástico. Abatem-se todos os males da humilhação sobre o garoto-joia de Xerém.

Ato contínuo, como um terremoto de magnitude chilena, treme a nossa área. Crateras engolem nossos zagueiros, rachaduras fazem nossa parede ruir. Sim, ela, a bola, sob comando de Sobrenatural de Almeida, vinga-se, sem razão aparente, do seu antigo amor. 1 x 0. Estava decretado o primeiro tempo.

No meio da Fluchile, surgiu Gravatinha – Isso são horas? Disse o fantasma de Nelson, sentado junto à multidão tricolor (a morte não desobriga ninguém de suas obrigações clubísticas). Desculpe-me, estava comendo um “barros luco”, justificou-se o amuleto enquanto terminava o delicioso sanduíche local. E é então que tudo muda. Porque, um dia, todo talvez vira sim. E chega a hora de ir embora os senões.

Para mostrar seu arrependimento, a bola engana os zagueiros chilenos, faz com que escorreguem e, em meio ao turbilhão de pernas que a procuram, faz charme ao escolher o pé direito de Nem. O mesmo que havia desdenhado, elege agora para a redenção. Rede, estopa. Vibrava a torcida. Brandiam os jogadores. Pulsava o mundo. E ela sentiu-se feliz como jamais havia sido.

Daí passou do flerte ao romance. Entregou-se apaixonadamente ao toque tricolor. Rendeu-se à majestade dos Guerreiros. Premiou, paixão à primeira vista, o primeiro toque que recebeu de Wagner. E espantou o Sobrenatural. O espectro, antes de ir embora, ainda jogou no travessão a bola de Rhayner, símbolo de uma castidade em três cores.

Cai o pano. Em meio a apupos diversos, como na mais polêmica das peças, o público manifestou-se. Ainda bem que não houve unanimidade. O Flu não merece a burrice. No fechar da transmissão, no fade out da câmera, juro que pude ver Nelson sair abraçado ao Gravatinha do estádio.

Se jogamos bem ou mal, pouco importa. O videotape é burro. Como qualquer multidão. Deixemos a imprensa de lado. O Flu segue soltário. É sempre o que está mais só. Assim sempre foi. Desde quarenta minutos antes do nada. E o Chile foi o cenário onde o Flu reencontrou sua história.

PS.:
Segundo meu amigo Rafael Maia, valem as constatações:
– O Gum cruza melhor que o Bruno.
– O Edinho é melhor zagueiro que volante.
– O Rhayner não faz gol, mas tem vontade.
– O Abel tem uma estrela na hora de substituir…

Walace Cestari

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Contato: Vitor Franklin

5 Comments

  1. Sensacional, Wallace “Nelson Rodrigues” Cestari!

  2. Este sim é o Cestari que conheço – sem ainda conhecê-lo pessoalmente -, texto digno de um Tricolor inteligente e apaixonado, com talento para as decisões, transpiração e inspiração abraçadas, em feliz sincronia de movimentos. Parabéns pelo texto, não temos problema algum em elogiar o que merece ser enaltecido, não somos ninguém muito importante, mas somos nós mesmos, assim como os guerreiros de nosso Fluminense. STT, Waldir e Waléria Barbosa, idealizadores do Fluliterario.com, um modesto site de Tricolores para Tricolores sempre críticos e apaixonados.

    1. Obrigado Clarisse e Waldir!

      Waldir e Waléria, claro que vocês são importantes! Ainda mais porque levam, além do Flu, a literatura no coração!

      Acabei de pôr o Fluliterário em meus favoritos, para poder acompanhar mais de perto e conhecer mais sobre escritos e mais escritos!

      Que venham todos os tricolores, vestidos de verde, branco e grená, com suas penas e papéis, para encher o mundo de lirismo em três cores!

      Amplexos,
      Walace Cestari

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