Absolutamente doido, chapado e de noite virada com emoções diferentes em plena segunda-feira olimpíada – com direito a mergulhos no undercover da Cinelândia – muitos bofinhos em busca de grana – festas estranhas com gente esquisitérrima, Chiquinho Zanzibar pede café numa lanchonete em Copacabana às seis da matina, repara os últimos movimentos turísticos dos estrangeiros a caminho dos hotéis e hospedagens. Espia o smartphone e ignora os recados de Esmeralda e admira o jovem rapaz forte que pede uma vitamina ao balconista. Também mostra desprezo pelas deliciosas garotas de programa que desfilam no bairro maior.
Passou-lhe pela cabeça em criar um personagem que pudesse atrair as atenções na campanha eleitoral do Flu, já a todo vapor. Uma imagem que fosse carismática e, ao mesmo tempo, não abrisse mão de seus princípios integralistas. É claro que o Macunaíma gay não está pensando no Fluminense, mas em seus benefícios particulares futuros.
Num primeiro tempo pensou em seu eterno coleguinha de redes sociais, Filhão. Mais agarrado do que pêlo em bolsa escrotal na politicagem do clube, este poderia ser uma figura essencial: agressivo, de baixo intelecto (e portanto mais sujeito a ordens impositivas), de clara personalidade fascista, reacionário a dar com um pau, cínico, covarde e obsessivo, ele seria um reforço para os debiloides que sonham com uma SS tricolor. Até aí, tudo bem. Mas havia um problema difícil de contornar: a total falta de carisma do moçoilo. E sem carisma até um peido sai desafinado. Chiquinho o admirava como reaça, covarde e dissimulado que era, mas não via nele nenhuma vocação melhor do que a de moça dos recados de seu grupo de politicagem. Era preciso mudar paradigmas.
Num segundo, Zanzi teve um insight fulminante: e se fosse criado um personagem para motivar e divulgar a campanha? Não teve dúvidas: imediatamente pensou em um Filhão remake, montado, maquiado, como se fosse uma nova personagem – e era mesmo. Claro, seria um travesti, esse personagem inebriante que desafia definições e contextos da arte – Chiquinho pensara em um que vira na volta para casa, caminhando de forma sapeca pela Avenida Augusto Severo. A figura do travesti suavizaria a imagem apagada do pombo correio da politicagem tricolor. E o nome seria óbvio: Mulher Filhão.
Melhor ainda: em vez da figura única, a criação de vários personagens, formando um grupo e naturalmente causando ainda mais impacto, todos devidamente embonecados, montados e coléricos e esfuziantes, prontos a apedrejar qualquer pessoa que os criticasse ou que tivesse divergências eleitorais no Flu, garantindo o pensamento monocrático, tudo exatamente como se vê com amadores tricolores nas redes sociais. Mas com uma diferença clara: um grupo de travestis poderosas alavancaria a campanha em termos de polêmica num país homofóbico, é claro. O nome já estava pronto: “Mulher Filhão & seus Filhettes”. A concepção visual seria inspirada em dois fenômenos musicais dos anos 1970: o estadunidense Village People e o brasileiro Dzi Croquettes.
Não havia a necessidade de maior sofisticação intelectual dos participantes filhettes: o texto de campanha já viria pronto para que todos o repetissem na internet, bastando apenas xingar quem os contrariassem. Tudo facilmente resolvido por um grupo de Whatsapp. Cada mona ficaria encarregada de copiar e colar os textos de campanha, mudando uma ou outra palavra. Discurso único, reto, padrão Führer de modus operandi. Primeiro atacando os blogueiros comunistas de merda, depois a qualquer opositor e fazendo todas as aparições públicas com o novo visual: assim fingiam-se de “modernos e antenados”. Reuniões semanais no Bar Corujinha da esquina de Hilário de Gouvêa com Domingos Ferreira, Copacabana sempre.
Chiquinho estava obcecado. Queria manter o poder no club, continuar como a rainha da sauna e voltar a faturar um troco com meninos da base. Não podia colocar em risco sua imagem de conselheiro respeitável, era a hora de um ataque massivo. Mas escroque que é, negocia com a situação e a oposição. Tudo pelo poder.
Dada a sua autoproclamada ideia genial, esperou dar sete da manhã, então ligou para Filhão e contou de seus planos. O passivo da conversa em certo momento reagiu: não queria assumir uma persona feminina em público, o que poderia abalar seu casamento de fachada e sua fama de macho no mundo virtual. Levou na cara: “Deixa de ser otária! Eu não vou te pedir para ser o que não é, mas para fazer o que você sempre quis, sua biba travada! Tá pensando que a vida é ficar o dia inteiro de viadagem no Twitter enganando o patrão? Seja homem uma vez na vida e assuma um pouco do que você é! O lançamento da Mulher Filhão será um sucesso! Cada Filhette que posar nu ou fizer programas terá que pagar um percentual para a gente. E vamos logo fazer a gentrificacão do club, antes que esses faveladinhos queiram ficar ao nosso lado”. E conseguiu o que queria: o aceite do reaça analfabeto.
Desligado o telefone, Chiquinho planejou ir ao centro da cidade mais tarde. Ia pesquisar preços para a compra de materiais de confecção das fantasias dos Filhettes. Já se imaginava comprando mil apetrechos na Casa Turuna. Antes, iria para casa dormir um pouco depois da noite safadinha. Voltando para seu lar, ele olha a esquina de Prado Júnior com Avenida Copacabana e relembra o Coruja Bar, hoje falecido, com suas emoções diferentes a la Pecadópolis. E logo vem a inspiração para o jingle do grupo de travestis:
“Sai do chão/ sai do chão/ que é a Mulher Filhão/ minha tropa é poderosa/ das Filhettes sedução/ se você tem um problema eu já sou a solução/ e sei tudo do Fluzão/ faço pé, cabelo e mão/ eu sou a locomotiva e atropelo de montão/ se quiser me engatar/ vai ter que ser meu vagão/ Eu fundei essa nassão (sic)/ Eu sou a Mulher Filhão.”
Mas que ninguém se iluda com fidelidade. No dia seguinte, numa reunião política da oposição, Chiquinho compareceu e não se fez de rogado diante de um candidato: “Você faria conosco uma reunião na sauna?”. Ao receber o sinal positivo, revirou os olhinhos veteranos e suspirou. Tudo de acordo com os anseios do nosso herói gilete, que corta para um lado e para o outro.
Panorama Tricolor
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Imagem: muf/Caio Barbosa