Publicado originalmente no Museu da Pelada
Deitado em minha cama, a mesma onde nasci e onde meus pais morreram. Antigamente a cabeceira era de palhinha, até que a minha mãe trocou por compensado. Ficou bom. Quando eu era bem pequeno, a cama era gigantesca, mas continuo gostando hoje e não a troco por nenhuma dos vários hotéis onde já me hospedei.
Tarde de sábado, o Fluminense vai jogar com o Sport no começo da noite. Nada de TV, internet, tempo real. O velho radinho não funciona mais, há muito tempo, mas mexo no celular e acho a Rádio Globo. Eu só quero o som do jogo.
Não tem mais radinho, nem 1220, nem Rua do Russell, 434, Glória. Não tem mais rampa da UERJ, arquibancada de cimento, uhhhhhhh trepidando a marquise. Agora não tem nem público, paciência. Vamos ao FM, 98,1.
A voz inconfundível de Edson Mauro na narração.
Eu o conheci há mais de 40 anos. Adorei seu jeito divertido de narrar. Para completar, o Fluminense venceu e achei que o locutor deu sorte ao Flu. Nos clássicos, eram Jorge Curi e Waldyr Amaral, nos outros jogos era Edson Mauro, co-mu-ni-caaan-do. Meu Flu de Miranda, Tadeu, Edinho e Carlinhos. Tinha China, Perivaldo e Mendonça. Catinha, Roberto e Zandonaide. Luisinho Lemos e Renato. Té. Anapolina.
Cantarele e Mazzaropi todo mundo conhece. Meus goleiros são Leite, Gato Félix e Jurandir. E Ernâni. Braulino também. Jair Bragança! Borrachinha! Zé Carlos!
Edson Mauro com sua voz cristalina, impactante e eterna. O jogo vai começar. Volto a ter dez anos de idade, sonho com meus pais conversando por perto, lá vai o Fluminense de 1978 no radinho que o smartphone ajuda a reavivar. Certa vez o Edson esteve presente numa homenagem do Cinefoot, o fabuloso festival de cinema de futebol. Foi a única vez que o vi, mas tive vergonha de cumprimentá-lo: falar com ídolos não é fácil.
Procuro por defesas de Wendell. Ataques de Miranda, o Trésor brasileiro. Quem se lembra de Marius Trésor? Um zagueirão, cracaço francês que influenciou muita gente, de Mozer a Aldair. Será que vai ter Cléber e Pintinho? Doce ilusão, os tempos são outros.
E o Sport? Não tem País, nem Marião, nem Denô, que era um terror e nos venceu naquele tempo.
O primeiro tempo acabou meio chocho, com o Rubro-Negro tendo um jogador expulso. Zero a zero. Sonho com aquele copo gelado de Coca-Cola espumosa vendida pelos astronautas da arquibancada. O cachorro quente. Não há nada. Meu único tesouro da infância é a voz inconfundível de Edson Mauro, acompanhado por meu querido amigo Rafael Marques, que sabe tudo e vi começando em rádio, agora um comentarista consagrado. Rafael é mais suave e polido do que o velho herói João Saldanha, que teria esculhambado o Fluminense neste jogo.
Olho para o teto e sonho com o velho placar de lâmpadas do Maracanã, informando os jogos da Loteria Esportiva e do Campeonato Carioca.
Volta o jogo e Edson Mauro segue a narração simpática de sempre. Algo me lembra de uma canção de Gil: “sempre rindo e sempre cantando”. E dá sorte para o Flu, eu tenho certeza disso porque tenho dez anos de idade. Minha certeza infantil atesta que um narrador pode decidir as partidas para o meu time. Você entende o jogo direitinho quando ele é o narrador.
O jogo é fraco no rádio, tudo bem. Na TV e no Whatsapp ele fica bem pior. As mensagens não param. Sigo concentrado porque Edson Mauro não vai me trair e há de narrar um grande gol do Flu, até que a fantasia senta na cadeira dos fatos e pimba: 1 a 0. Gol, grande gol, meu amor.
Estou com os pés no estrado da cama. Bem que minha mãe podia apertar meu pé direito e dizer “Pequenininhoooo”. Era bom demais, tão bom que choro.
O Sport não tem Roberto nem Denô no ataque, a derrota de 1980 e 1981 não se repetirá, nem Maracanã é: estamos no Nilton Santos, casa do Botafogo, lugar de sorte do Fluminense.
O radinho simulado ainda tem sua magia. As mensagens não param. Edson Mauro com sua voz imperial atravessa as décadas. Impecável desde os tempos de Alberto Rodrigues, Danilo Bahia e Antônio Porto. Simmmm, Portooooooo!
Saudades de ouvir “Su-derjjjjj in-formaaa”. Victorio Gutemberg, nunca mais. O rapaz do Maracanã atual grita muito.
No fim do jogo o valente Sport pressiona mas não chega. É o Flu de uma vitória magrinha, humilde, um golzinho e o narrador infalível conta mais uma vitória tricolor. Tem sido assim nos últimos 40 anos.
Heber Roberto Lopes encerra o jogo. As luzes do Maracanã não se apagam. Eu vejo Rubens Galaxe, eu vejo Robertinho e Silvinho do outro lado, ele que era tão nosso. O meu time todo de branco numa paz monumental, juro que era assim e que saíamos felizes ao descer a rampa do Bellini. Antes, o velho placar de lâmpadas escrevia “Boa noite” e tínhamos a sensação do dever cumprido, pouco importando se foi uma vitória ou não. Agora estamos no Nilton Santos, não há público nem placar de lâmpadas, mas o futebol resiste.
Acontece um estalo. A fantasia acabou. Pulo dos 10 para os 52 anos. Estou sozinho no quarto, sem pai nem mãe, sem irmão nem esposa, mas meu time venceu o jogo e eu trocaria tudo para poder voltar a 1979 ou 1980, quando meu mundo era não tirar nota vermelha, jogar bola na praia de Copacabana, na vila, em frente ao shopping center e jogar botão debaixo da escada rolante com Augusto, Luis, Marcelinho e Chapecó.
É sábado à noite. Sou eternamente agradecido a Edson Mauro. Ele é trilha sonora da minha vida. A voz do jogo, o som do gol, a diversão: bingo! Quando ele conta as histórias de uma partida, meus pais são imortais conversando da sala. Não acredito que já se foram quarenta anos: tudo é brevidade. Soube que o America empatou à tarde, vou torcer muito por Deola e Richarlyson, o filho do Lela.
Quarta-feira que vem tem outro jogo. Tudo recomeça nesse eterno presente em que vivemos. Marque o tempo.
O tempo.
Em memória do lateral direito Carlos Alberto Barbosa.
@pauloandel