Em situações de migração, laços entre famílias funcionam como resistência emocional e cultural/simbólica, na preservação do idioma, das linguagens diversas para expressar sentimentos e ideias, visões de mundo, desde a corporal até a gastronômica. Frustrações e aventuras de sucesso passam a ser compartilhadas com quem se tem confiança. As pessoas tornam-se compadres e comadres, reconhecendo publicamente a intimidade e a cumplicidade como eventuais substitutos dos pais de seus filhos, e até mesmo apaziguadores de crises conjugais e familiares. Os filhos criados no ambiente da imigração, em suas redes de solidariedade, têm como opção concreta casarem dentro do grupo de origem ou virarem amigos, na pior das hipóteses, a partir de elementos comuns de suas identidades coletivas – morar “nas arábias”, viver a experiência da imigração e do retorno ao Brasil, se expressar em mais de um idioma. A rede de relações dos “técnicos das arábias” assim foi estabelecida e reforçada com o incremento dos campeonatos locais do Oriente Médio e com algumas de suas seleções chegando, com a ajuda de brasileiros e da exploração do petróleo, às Copas do Mundo. No meio disso tudo, o Flu até hoje espera pelo pagamento do passe de Rivelino. Mas isso é outra história… Pouco falada, por sinal, e, por isso, ainda posta debaixo de panos muito espessos e pesados.
Essa rede de relações a partir das “arábias”, no final dos anos 1980 e início dos 1990, estendeu-se ao Brasil, numa espécie de refluxo dos que nela resistiram. Era o início da junção das pontas internacionais da rede. Com entrada em muitos grandes clubes, através de pessoas de sua confiança, esses profissionais da bola foram indicados para cargos de técnico, preparador físico e até mesmo para as áreas administrativas. Ao longo dos anos, todos foram se indicando mutuamente e, com as mudanças na lei do passe, tornaram-se parceiros de empresários de jogadores, passaram a ter seus próprios “agentes”, e, em seguida, ou tornaram-se “agentes FIFA”, ou ajudaram a alguns a conseguir essa tão cobiçada credencial. A rede do refluxo migratório estava reforçada e mais internacionalizada ainda com a chegada à seleção brasileira, em suas mais variadas categorias. Ano após ano, segundo informantes, há eventos fechados entre esses profissionais, ainda contando com preparadores de goleiros e físicos, e outros mais contando com a presença de familiares e “amigos”, que consolidam os laços de solidariedade. Exemplo disso são os tradicionais, no sentido da repetição de um fato num calendário de grupo específico, almoços ou jantares de final de ano. Todos esses profissionais são homens, diga-se de passagem, só pra lembrar a marca do gênero nas relações que estou abordando, agora mais experimentados, vestindo as mesmas marcas de roupa, usando os mesmos tipos de jóias, perfumes, modelos de carros, relógios e, preferencialmente, morando na Barra da Tijuca. Passar férias na Disney e em Miami, quem sabe até possuir imóveis por lá, também passou a servir de elementos de distinção social e identidade para esse grupo, mostrando sua opulência financeira. O tamanho das somas de dinheiro apostadas em mesas de pôquer, também cumpre, até hoje, esse papel. Eles fincaram os pés nos cursos superiores, públicos e privados, de educação física e fisioterapia – com a participação de árbitro e ex-árbitros e bandeirinhas.
Essa rede de socialização passou a incorporar outras mais, tendo como resultado alianças com pessoas em cargos políticos de escalas diversas, e também no mundo que Atahyde Patreze tanto propagandeava, envolvendo novos tipos de artistas, capas de revistas masculinas, cirurgiões plásticos e outros profissionais da estética, músicos do “mundo do pagode”, do “axé music”, “do sertanejo”, “do funk das comunidades”, corretores de carros, imóveis, joalheiros e… Consultores de tudo um pouco! Alguns jornalistas também passaram a ser figurinhas fáceis nesse “mundo”, promovendo a ponte entre redações de jornais e escritórios de acessoria de imprensa, fazendo, além dos elogios, críticas contundentes e notícias mais pesadas, “denunciando” escândalos de paternidade pouco queridas, complicações policiais ou jurídicas constantes em épocas e situações estratégicas. Os “técnicos das arábias” ganharam as manchetes, e suas contratações viraram milionárias novelas. Ficou importante ser “amigo” de técnico, desses técnicos. Uma vez, fui a uma festa de aniversário de uma criança, regada a uísque e comidas pouco afeitas a uma boa dieta infantil, além de música com “letras picantes”, que contou com show de slides de seus pais e… Eis que em uma das fotos eles apareceram com ela, em seu colo, ao lado de um dos técnicos mais famosos do Brasil! Tratava-se de exibir a foto como um estandarte do recente sucesso do casal, mostrando aos convidados que “conheciam o cara”! Conversando com outro informante, fui informado de que algumas listas de pessoas investigadas por negócios obscuros, envolvendo altas somas de dinheiro não declaradas e empresários estrangeiros, até, mais pareciam, segundo suas palavras, “reportagem de revista Caras e da parte de futebol dos jornais e sites de notícias esportivas”!
Há técnicos e profissionais que surgiram no cenário nacional dos clubes de primeira divisão por outros caminhos? Sim, sem dúvida. Inclusive muitos ex-jogadores, alguns vitoriosos quando em atividade dentro das quatro linhas. Mas eles entraram no “mundo da bola” como técnicos também através dessas redes de relações inauguradas pelos “caras das arábias”, que formam uma espécie de núcleo duro desse mundo da bola onde rola mais grana, principalmente em moeda estrangeira – assunto para outra coluna. É preciso se relacionar com alguns deles, ser bem falado por eles em suas rodinhas vip. Eles não mais se reduzem ao Oriente Médio, mas também possuem tentáculos no Japão, México e outros países da África ao sul do deserto do Saara. Seu apoio é fundamental para que alguns projetos “alternativos” vinguem. Fagocitam novos grupos, novos perfis, que só vão adiante com sua benção. São pessoas poderosas para apresentar outras com interesses comuns no maravilhoso mundo dos lobbies. Afinal, nossa democracia caminha com leis recentes, pouco conhecidas, outras que nem existem, máquina burocrática ainda arcaica, muita gente fazendo força para que o serviço público continue ruim e pouco eficiente em muitos casos, não em todos, contando com muitas das leis que pouco dizem sobre a nossa realidade atual. Há ainda aquelas clássicas e eficientes campanhas de engavetamento de projetos que possam afetar negativamente os interesses financeiros de pessoas ligadas ao “mundo da bola”.
Não acho adequado pensar o futebol, na verdade as múltiplas relações que compõem o que chamo de “mundo da bola”, fora das relações de produção capitalista que, por sê-las, são internacionalizadas, porque o capitalismo moderno, industrial, fez-se assim. Os jogadores são produto e mão de obra simultaneamente a isso tudo. São peças-chave na engrenagem da produção de capital. Deles, através de alguns informantes preciosos, tirei como “categorias nativas” – como chamamos em Antropologia as expressões mais fortes que os grupos usam para falar de si e dar significado as situações diversas, em resumo – “mundo da bola” e “técnicos ou caras das arábias”.
Os salários altíssimos dessa mão de obra especializada, em tese, é o tema da próxima coluna dessa mesma série.
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Luiz Alberto Couceiro
Panorama Tricolor
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