Numa rua da Zona Norte do Rio, Aloisio passou e tirou a foto da casa mais humilde por lá. Foi um registro impecável.
Uma bandeira do Fluminense fazia as vezes de cortina à janela. Cortina simples e bela, que diz tanta coisa.
É que o Flu está em muitos lugares. Por isso mesmo, foge das obviedades e preconceito estúpido. Desafia definições. E dá um soco na cara a arrogância oca, mostrando o que todo mundo já sabe: somos familiares a milhões de torcedores.
Às vezes, ficamos um tanto entorpecidos e até mesmo intoxicados com tantos excessos que a internet nos causa. Um mar de vaidades ocas, manchetes que não dizem nada, o campeonato mundial dos senhores da verdade fedorenta e outras besteiradas que nada têm a ver com a essência do Fluminense.
Só para contrariar Cazuza, amar não é abanar o rabo ou acatar sandices de dirigentes, ou ainda admirar a vassalagem jornalística que cerca o clube.
A essência do Fluminense está em imagens como a desta janela, tão digna e respeitável quanto os nobres vitrais franceses de Álvaro Chaves.
Está nos corações dos garotinhos vestindo camisas tricolores humildes, piratas, às vezes sendo puxados pelos pais, noutras vezes sozinhos com suas caixas de Mentos, batalhando a sobrevivência numa terra de miséria e indiferença.
O Fluminense dos caixeiros, camelôs, proletários com seus bonés amassados em trens lotados, em ônibus empinados, em inesquecíveis bancas de jornais da Rio Branco, da Tijuca e mais longe, como em Vaz Lobo ou Honório Gurgel.
Numa arriscada jornada de carro à noite pela Grajaú x Jacarepaguá, bem do alto, olhando para baixo e vendo milhares de luzinhas que, no fundo, são lares também humildes – sabendo que naquelas casas também há sinais de Fluminense, assim como em Padre Miguel, Cidade de Deus e Senador Camará, do mesmo jeito que havia há anos no Edifício Pampeiro, em Copacabana.
A bandeira dessa janela de casa humilde é uma esperança, é uma garantia de perenidade nessa vida que, por aí, é tão injusta e humilhante para tanta gente. Mesmo nos momentos mais difíceis, ali o Fluminense pode ser acalanto ou folguedo a cada quarta ou domingo – ou quinta, feito hoje. Noite em que vamos jogar dois dados honestos, tendo um único par de faces favorável e os outros trinta e cinco contra. Ok, estão rolando os dados porque o tempo não para. Ok, ainda estão rolando os dados.
Não são nem sete da manhã de quinta-feira e agradeço ao Aloisio pela sensibilidade da foto. Ela sintetiza muito do que precisamos por aí, pelos arredores tricolores: respeitar o que a humildade tem a nos oferecer, entender que o Fluminense povoa o coração de muita gente, em muitas casas e até nas calçadas de dor e sofrimento, até nas barracas de crack à beira da linha férrea, no underground dos bairros e até no imaginário de artistas que nunca foram às Laranjeiras mas são nitidamente tricolores de coração, como Tom Waits por exemplo – e então me lembro de grandes fotos de Nick Cave com a camisa tricolor.
Seja o que for logo mais, o Fluminense continuará a ser uma potência, uma valentia, mesmo que uma eliminação quase certa nos entristeça, mesmo que não nos deixemos enganar pelas lorotas dos dirigentes, mesmo que fiquemos muito longe do aceitável hoje. São cento e vinte anos, nós já vencemos e perdemos muito, a nossa história está escrita em milhares de páginas.
Pensando bem, com a bandeira tricolor desfraldada quem parou para pensar em cortina? Temos uma janela tricolor pro céu. Isso exige respeito.
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Ligo a TV. Há notícias sobre um vereador criminoso. Estão derrubando prédios da milícia. Ando tão infeliz que não sei como não morri estes dias, nem sei o que vai ser dos próximos – pode ser que minha missão seja ficar aqui com a melancolia à beira do nariz, disfarçando. Tudo bem. Mesmo com a corda no pescoço, vou tomar café, dar bom dia pro meu amor no trabalho, me preparar para ir ao meu trabalho, escrever coluna para o Museu da Pelada, torcer para vender bem logo mais.
À noite, a missão do Flu é difícil de doer, menos pelos resultados em si do que pela probabilidade de uma goleada retumbante. Difícil demais, muito difícil, só não é impossível.
Que esta quinta seja um raro dia de paz. Vou carregar comigo a paisagem da janela tricolor. Domingo tem Fla x Flu, são outras palavras.
Crônica escrita sobre a foto de Aloisio Senra
Paulo,
Eu que te agradeço pelo texto homenageando o tricolor (ou tricolores) humilde que mora nessa casa, a quem não conheço, diga-se. Mas não é preciso conhecê-lo para entender a paixão que dividimos e a importância da mesma. Que o milagre venha hoje na Bolívia. Abraço.