Injeção de Botox (por João Leonardo Medeiros)

botox

A frase não lhe saía da cabeça o dia inteiro. E o pior é que não se lembrava sequer de onde tinha tirado aquele pensamento maluco. Que diabos significaria injeção de Botox? Não conhecia ninguém que tivesse recorrido a tal injeção e, honestamente, achava que isso era coisa de madame decadente do Leblon. Ou de viado. Ou de viado-madame. Mas a expressão continuava firme há horas, verdadeira idéia fixa, música ruim ouvida por acaso. Injeção de Botox.

É claro que o trabalho maçante tinha a ver com isso. Entre ouvir as asneiras de sempre do chefe, um idiota com terno e gravata, fala impoluta e merda na cabeça, ou ouvir a maldita frase, ficava com a segunda opção, por pior que fosse. Além do chefe insuportável, tinha o ócio. Não fazia nada digno de lembrança há séculos e, como todos sabem, cuca vazia é moradia do diabo. Diabo com Botox. Diabo com injeção de Botox. Diabo de chefe com injeção de Botox.

Pelo menos sabia que o carma-mantra tinha prazo de validade determinado. Expirava no final do dia, quando finalmente, depois de muito tempo, iria rever os amigos de infância para o que certamente seria uma animada pelada no campinho do Aterro. Havia tempo mesmo, mas tinha plena convicção de que todos o receberiam com a velha cordialidade, recontariam os causos antigos e o atualizariam dos novos causos. Contaria os seus também, que eram, em seu juízo, ótimos para o chope pós-jogo. Seria interessante ver a aparência dos companheiros de bola. Quem estaria mais gordo? Quantos carecas? Cabelos brancos? Deficiências físicas visíveis, óculos, operações? Injeções de botox?

A perspectiva de um futebol emoldurado pelas belezas do Aterro era o único remédio que impedia a disseminação da frase desgraçada e, ao mesmo tempo, apressava o dia. Fazia o chefe parecer a Branca de Neve, um amor de pessoa. E, embalado pelo bom pensamento, pela expectativa do animado encontro, o dia passou. Bateu ponto e saiu em disparada. Entre o trabalho e a casa, uma carreira desabalada. Entrou com pressa e foi logo avisando a esposa, antes que ela tivesse tempo de pedir para consertar alguma coisa ou buscar no mercado ingredientes em falta:

–– Nem adianta que hoje tem racha com meus amigos de infância. E vê se me ajuda a achar a chuteira.

Não precisou da ajuda. Lá estava ela, numa caixa com velhas lembranças, meio suja, mas com o formato do pé ainda marcado. O pé esquerdo trazia-lhe especialmente grandes recordações. Quantos gols, quantas jogadas sensacionais, quanta diversão saudável tinha como cúmplice aquela chuteira. Aquele pé. Nunca fora o craque do time, mas sempre teve categoria. Um pouco lento, é verdade, mas com bom posicionamento em campo. Atrapalhava-lhe um pouco a incapacidade de reproduzir, com o pé direito, as diabruras que criava com o esquerdo. Mas o saldo era mais que positivo. Não era um botinudo, desses que precisa de injeções de Botox para dar o mais simples drible. Que, aliás, lembrou-se, nos bons tempos chamava de “dibre”. Dibre da vaca, dibre entre as canetas, quantos aplicaria naquele dia?

Pois bem. Resgatou do fundo do baú a camisa da sorte, o meião do time de coração e o short mais confortável. Vestiu-se todo, com calma, imaginando as tabelas e jogadas espetaculares. Calçou a velha chuteira e levantou o meião como antigamente. Dobrou as extremidades cuidadosamente. Não sabia exatamente o porquê do ritual da dobra de meias. Era uma daquelas coisas que se faz por instinto, como lavar o rosto de manhã, como molhar o pão no café, como pensar injeção de Botox a cada cinco minutos. Inferno, não havia ainda superado o barulho de sino, mas sabia que ele já estava por terminar. Faltava muito pouco. Mirou-se no espelho, fez um breve aquecimento, agachamentos, algumas flexões e tomou um táxi para o Aterro. No passado, o trajeto era de ônibus, recordou-se. E, de vez em quando, passava por debaixo da roleta.

Lá estavam todos. Uns barrigudos mesmo, outros (ou os mesmos) meio carecas, cabelos brancos por todo lado. O ótimo ambiente de sempre, piadas sem fim, gozações de todo tipo, a infância perpetuada. Chegou um pouco tarde apesar do táxi, não tendo tempo de curtir o papo pré-racha, postou-se junto ao pessoal da famosa “de fora” e ficou esperando passarem os dez minutos. Ou algum dos times fazer dois gols. Como sempre. As mesmas regras de sempre. Já sentia a serenidade de volta.

Saíram mesmo os dois gols, rapidamente. Pegou o colete verde, relativamente novo, e foi para o campo. Notou que mudaram o piso para grama sintética, em que nunca havia atuado, mas que não lhe parecia nada do outro mundo. Deu dois piques e viu que não escorregava, a chuteira de confiança continuava firme. Mais alguns agachamentos, flexão não, e sentiu-se pronto. Pegou a bola, para sentir o peso, e arriscou alguns chutes de aquecimento. A perna estava afiada.

Rolou a bola. Observou bem o posicionamento do seu time e dos adversários. Quatro na linha de cada lado. Goleiros fixos. Colocou-se do lado esquerdo do campo, como sempre fizera. Ao receber a primeira bola, rolou de lado. Abriu-se uma brecha, mandou-se para o ataque. Não lhe devolveram a bola, que findou por sair na lateral. Retornou e ocupou o espaço na defesa. O contra-ataque do adversário era rápido, mas felizmente o goleiro era bom. Bloqueou o chute e passou-lhe a pelota, para puxar o contra-ataque. Injeção de Botox. Na subida pela esquerda, sentiu algo estranho. Injeção de Botox. Uma dor de corpo inteiro, tontura. Alguém do seu time começou a esbravejar, primeiro com ele, depois com o pessoal de fora, que não o substituía. Ouvia a maldita frase, ininterruptamente. Foi para o gol. Faltava pouco e estava empate. Tentou se concentrar. A turma de fora contando o tempo. Falta só um minuto. Calma, segura as pontas, não vai levar gol logo agora. Nem injeção. De Botox.

Acabou o martírio, digo o jogo. Sentia-se arrasado. O racha, para ele, durou dez minutos da hora e meia programada, cinco dos quais absolutamente insuportáveis. Meio tonto, procurou as coisas e se mandou, sem conseguir se despedir de todos os velhos conhecidos. Simplesmente se mandou em outro táxi, cujo motorista assistia calmamente a pelada. Entrou em casa sem fazer barulho. Recostou-se no sofá, onde passaria a noite, com certeza. E esperou dali o suplício tomar conta de tudo: injeção de Botox, injeção de Botox, injeção de Botox.

João Leonardo Medeiros

Panorama Tricolor

@PanoramaTri