O Fluminense não era favorito e nem precisava, porque a história do Fla x Flu avisa há mais de 110 anos: cuidado com a soberba, porque ela corrói a alma. Vale o campo, o escrito, e ficam de fora todas as maluquices feitas ao seu redor – o Tricolor tem várias.
O destino entrou em campo e, impávido, fez o jogo correr a seu sabor. O Flamengo, rei do ego, já se sentia vencedor, aclamado por jornalistas incapazes de acertar um mísero palpite jogo após jogo.
O ego continuou firme dentro do primeiro tempo. Eles atacavam mas concluíam pouco e mal. O Flu sofria, mas levantou a cabeça e, nos quinze minutos finais, não somente agrediu como teve a grande chance da partida no pênalti, que Ganso ironicamente desperdiçou. Aguardem.
[Sabe a história do sujeito cheio de si, que corteja a linda mulher com palavras tolas na festa, enquanto ela observa um sujeito humilde sentado sozinho à mesa, até que ela despreza o fanfarrão e mira em seu alvo principal? Pois bem, o Flamengo despejava bobagens nos ouvidos da vitória, enquanto ela via o tímido Fluminense num canto e resolveu conquistá-lo
Num súbito, o Fluminense troca a timidez do primeiro tempo pela fúria planejada do segundo. Virou o Pink Floyd em Venice: quebrou todas as vidraças com seu som potente, não deixou pedra sobre pedra e literalmente fez o queixo rubro-negro virar paçoca.
A grande ironia veio dos pés de Ganso. Qualquer jogador que perdesse um pênalti num Fla x Flu estaria em frangalhos. Ele, não. Voltou do intervalo e acabou com o jogo. Decidiu o clássico com dois passes mortíferos.
A ironia também estava no sorriso de Arias, desrespeitado pela politicalha do clube. Riu e marcou, riu e decidiu. Nosso David Gilmour. E numa noite de ironias, Martinelli debochou de seus haters gratuitos, ingratos, que não reconhecem nele uma dedicação de anos. Foi um monstro e também ajudou a acabar com o jogo. Lima foi sagaz no primeiro gol.
Ainda sobre Ganso. Os jornalistas pró-Gávea adoram mitificar a presença de Zico na história do Fla x Flu por conta de seus gols, não de conquistas sobre o Tricolor. É importante dizer que muitos jogadores do Fluminense já tiveram o mesmo destaque no clássico maior, com a diferença de ganharem títulos. Lá de longe vem Romeu Pelicciari, depois Telê, depois Didi, depois Samarone e Rivellino, Assis e Deco. Agora Ganso, esplêndido. E no meio deles, a bela lembrança de Kauã Elias – importante no jogo – já no banco, junto com a nossa torcida: a presença no ar de Thiago Neves, que merece ser louvado numa palavra de quatro letras, tão devastadora quanto a fúria do Pink Floyd em Venice, lembrada acima: créu!
[São quatro horas da manhã e a cidade é um silêncio enorme. Eu tenho uma insônia feliz como não tinha há muito. A vitória do Fluminense foi tão bonita quanto a Gabriella. Tenho um sanduíche duplo de queijo bola, um refresco de laranja e a mesma alegria das noites da água no chope, em 1978, e do golaço de Cristovão em 1979. Os jornais e TVs serão tímidos, mas Paulo Henrique Ganso escreveu mais um capítulo da história do Fla x Flu com suas jogadas demolidoras. Daqui a pouco, as crianças tricolores vão estar com a bola toda no recreio da escola. Não importa a falta de sono: tão desconcertante quanto rever o grande amor é reviver em idade madura as grandes vitórias da infância. E tudo isso nada tem a ver com jabás de jogadores, dirigentes patéticos e YouTubers cômicos, mas sim com uma camisa cheia de peso e história aos 122 anos de vida.
[O sanduíche tem o sabor de um banquete imortal
[O Fluminense gosta de ser sacana com o Flamengo
Genial, Paulo-Roberto ANDEL!