Estratégia, erros, falácias, ousadia e riscos: o Flu 2022 (por Marcelo Savioli)

Pelo tamanho e promessas do título, os amigos e amigas já devem estar preparados para ter paciência e atenção para ler esse artigo de hoje.

Permitam-me renunciar às minúcias e caminhar mais agarrado a generalidades, deixando as primeiras para análises mais setoriais, ou estaríamos condenados a compartilhar aqui um livro e não um simples artigo.

Em se tratando de livros, aqui mesmo no PANORAMA temos autores publicados, aos quais eu invejo. Aliás, a inveja é um dos fenômenos mais maltratados do universo humano. Quando eu me percebo invejando alguém, ali eu descubro que há algo que eu almejo, e, se almejo, isso me impulsiona a agir para alcançar.

O problema está em como cada um de nós lida com sua inveja e a forma como reage a ela. Eu espero que um dia a minha inveja seja suficiente para me impulsionar a sair da zona de conforto e aceitar o desafio de escrever pelo menos um livrinho que seja sobre o Flu.

Brincadeiras à parte, é muito fácil identificar traços em comum entre a atual política do Fluminense e aquela que vigorou entre 2014 e 2016. Na ocasião, tivemos aumento significativo dos gastos lastreado em receitas extraordinárias. A lembrar, durante aquele período o Fluminense teve receitas expressivas com vendas de atletas, luvas de contrato de transmissão e até o inusitado de termos tido tratado como receita um desconto de aproximadamente R$ 70 milhões em nossa dívida com a União por ocasião da adesão ao Profut.

Criamos um verdadeiro monstro que nos flagela até hoje. As figuras mais notórias desse processo foram o atual presidente e o então mandatário. Peter conseguiu a proeza de deixar para seu sucessor, Pedro Abad, um orçamento deficitário em mais de R$ 100 milhões, fora os tais macabros esqueletos que ainda nos assombram. Apesar de que, e isso deve ser ressaltado, deixou também um elenco bem interessante, que, ao final do primeiro quadrimestre do ano, chegava a ser apontado pela imprensa esportiva até como eventual candidato a conquistar o título brasileiro.

O que, além de não acontecer, esteve tão longe de se tornar realidade, que chegamos a ser ameaçados de rebaixamento. Não só em decorrência da venda emergencial de Richarlison e da tempestade de lesões graves que se abateu sobre o elenco, mas também por erros na gestão de Abel Braga à frente do elenco, o mesmo técnico que está hoje no nosso comando. O que, aparentemente, mostra que o Fluminense carece de criatividade no exercício de escrever sua própria história.

Isso quer dizer que eu sou totalmente contra o que está sendo feito? Não, isso quer dizer que eu gostaria que fosse feito de outra forma. E o que está sendo feito, para nós não nos perdermos na análise? Acreditam os dirigentes do Fluminense, com boa base teórica e fática, que só é possível encarar a atual conjuntura com ousadia e investimentos. A ousadia consiste em esticar a corda para obter resultados esportivos no futebol e, a partir deles, elevar, também, os ganhos econômicos do clube, para depois esticar um pouco mais a corda para tentar elevar ainda mais esses resultados esportivos.

Isso não é nenhum absurdo quando temos lastro. O Fluminense tem. Apesar de, contabilmente, termos um patrimônio líquido negativo em mais de R$ 200 milhões, a nossa real situação econômico-financeira não pode ser corretamente avaliada sem a inclusão do peso dos ativos de Xerém, que não entram nos demonstrativos financeiros do clube. Parece-me lúcido afirmar que os ativos que temos em direitos econômicos, de Xerém ou não, excedem de forma confortável todo o montante da nossa dívida.

Aonde estaria o problema, então? Ora, é aí que reside a maior das falácias, que é a afirmação de que a atual gestão está saneando o Fluminense financeiramente. Se você gera mais receitas do que o tamanho das suas despesas e imediatamente neutraliza essa folga aumentando as últimas, com que dinheiro você amortiza a dívida?

Se você lastreia o pagamento da dívida corrente em liquidação de patrimônio, como ficaremos quando esse patrimônio acabar? A dívida continua igual e o patrimônio sumiu.

Isso não é invenção da minha cabeça. Foi o próprio presidente que afirmou que, entre 2019 e o início, agora, de 2022, as despesas com a folha do futebol avançaram em 56%. Isso é um problema? Não, nós temos que aumentar o investimento no futebol, não há dúvida disso. Ficarmos estagnados em elencos muito baratos seria correr o risco de estagnarmos economicamente e ainda de flertarmos com um eventual e trágico rebaixamento.

Vejo que nosso presidente segue os passos estratégicos da Dissidência, que vem lastreando a robustez do seu elenco sobretudo na venda de atletas da base. A não conformidade nisso tudo está no fato de que os caras devem terminar o ano com um faturamento na casa dos R$ 300 milhões na rubrica “transferências”. É claro que tem aí a venda de atletas do elenco principal, não necessariamente formados na base. E nós queremos repetir a façanha com uma receita na rubrica que mal deve passar dos R$ 120 milhões, sendo que a dívida deles está na casa dos R$ 400 milhões, enquanto a nossa ultrapassa os R$ 700 milhões. Quando o faturamento deles em outras receitas é, provavelmente, o dobro do nosso.

É a aplicação da mesma estratégia para conjunturas diferentes. É ruim? Pode ser que sim, pode ser que não, contanto que respeitadas as devidas proporções. A saber, apesar da similaridade entre as estratégias, a folha do Fluminense não chega à metade da deles. O risco é atravessarmos a linha da sanidade, liquidarmos nossos ativos, elevarmos nossas despesas, ficarmos sem receitas extraordinárias e voltarmos a nado para o ano de 2017. E o pior é que depois de um 2017 sempre tem um 2018.

Uma questão premente é observar que o aumento dos gastos pressiona o Fluminense a gerar mais receitas extraordinárias. O que temos tido é um composto de receitas com premiações e com transferências. Isso significa alimentar uma obrigação de vender sistematicamente nossos melhores valores de Xerém. E, na medida em que o fluxo de caixa esteja apertado, significa vender barato para estancar a sangria.

Quer dizer, então, que está tudo errado? Quer dizer que a atual política vai nos levar à bancarrota? Não, não quer dizer isso. Como eu já disse, o maior risco para o futuro do Fluminense é a inércia. Não há inércia no Fluminense. Existe trabalho, existe até estratégia. E existe um lastro econômico que não existia no passado, até com as mudanças que se pronunciam no horizonte do futebol brasileiro. Tem a iminência da Liga e a possibilidade de uma nova onda de investimentos de forma mais consistente do que a que ocorreu até 2014.

O que tem que ser feito, então? O Fluminense precisa de poder de barganha. Poder de barganha para negociar a amortização descontada das dívidas e para impor ao mercado preços expressivos para venda de nossos ativos. Precisa de uma política mais ousada para a retenção de talentos vindos da base, porque são eles que estão equilibrando ou desequilibrando a nosso favor há anos.

É preciso eliminar os dutos que sangram nossas finanças e investir em novas fontes de receitas. Quando falo nisso, logo me vem à mente o projeto de reconstrução do estádio das Laranjeiras, tão maltratado pela atual gestão. Um projeto que eliminaria a sangria dos recursos em match days deficitários, transformando-os até em 100% superavitários, fora as outras receitas decorrentes desse projeto.

O Fluminense não precisa virar uma SAF, mas precisa fazer uma profunda reestruturação em termos de governança, que o torne um polo de atração de investimentos não exploratórios, mas de parcerias em que os ganhos sejam mútuos.

De qualquer forma, eu torço para que a atual estratégia dê certo. Não é a trombeta do fim do mundo. Eu acredito num Fluminense muito forte já esse ano no futebol e até em títulos importantes. Já falei sobre isso na minha última coluna. O que eu quero é uma estratégia sem lacunas, e isso nós infelizmente não temos.

Eu peço desculpas pela imprecisão com números, mas eu alertei para isso lá no começo. O importante aqui é oferecer a você uma visão voltada para a questão estratégica envolvendo a nossa grande paixão.

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Eu tinha essa coluna já pronta quando me deparei na alvissareira notícia de que o Fluminense fez um movimento muito inteligente para equacionar sua dívida cível e trabalhista. O clube trouxe os credores para a discussão de um plano de pagamento centralizado, com possibilidade de amortizações mais profundas para aqueles que acenarem com maiores descontos. Pagar dívida descontada é sempre bom.

O que me preocupa é saber de onde vem o dinheiro para, ao mesmo tempo, aumentar os gastos e ainda investir na amortização da dívida. O que eu vejo é a aposta (que não chega a ser insensata) em um círculo virtuoso carreado pelo futebol. Em outras palavras: resultados esportivos expressivos, aumento das receitas com premiação, bilheteria, sócio futebol, patrocínio, receitas de transmissão e manutenção, pelo menos a manutenção, das receitas com transferências de atletas.

Isso requer uma eficiência enorme na gestão dos recursos materiais, financeiros e humanos. E aí nós voltamos para a importância de uma governança eficaz, o que essa iniciativa do Fluminense com relação aos credores e à dívida contempla formidavelmente. Eu fico feliz com ela, mas eu quero mais profissionalização e visão empresarial em todos os aspectos, inclusive na gestão do futebol. Voltamos para a importância de termos investimento externo para dar equilíbrio aos projetos do clube, lembrando que uma coisa está umbilicalmente atrelada à outra.

É um momento em que, com satisfação, concluo que a gestão Mário supera em muito as minhas expectativas, mas isso para mim ainda é pouco diante do que precisamos. De qualquer forma, vamos aguardar. Quem sabe não vem mais surpresas boas por aí?

Saudações Tricolores!