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dois deuses pretos
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Por quem os sinos dobram nos corações de concreto cinza
“…e agora, passados todos estes trinta e tantos anos, eu penso em como todos aqueles dias de vitórias e humildade foram construídos, cada tijolo, cada passo. Os treinos nas Laranjeiras. Os rapazes tímidos e sorridentes vendo o Fluminense como o ponto culminante de suas carreiras. As crianças comendo pipoca nas veteranas arquibancadas num sábado nublado de manhã. Penso no time de jogadores inicialmente desconhecidos e geniais, órfão das manchetes, desprezado pelos homens de microfone, depois tão vitorioso que só a venda da arbitragem o derrubaria. Assis e Washington pulando sem sair do lugar, trocando palmas e desfraldando sorrisos imbatíveis depois de um gol marcado. Dois negros esguios, elegantes, vocacionados para o céu das três cores, vencedores sem debochar dos vencidos. Dois deuses pretos, longilíneos, diferentes e complementares. Penso em Assis na catarse do gol, como se não acreditasse nas histórias que escreveu com a bola, correndo para qualquer lugar que lhe permitisse ver que aquilo era verdade. Penso em Washington fazendo o corta-luz nas pontas para se desvencilhar dos adversários, ou tocando de leve na bola para encobrir invencíveis Acácios. Penso no Fluminense da reconstrução, coerente com seu passado e destino. Dois deuses pretos, cercados de brancos formidáveis no gramado e aplaudidos por pretos e brancos desdentados, com suas camisas furadas e bolsos vazios na verdade poética da geral do Maracanã, ou em pequenos campos da cidade onde se via os jogos grudados no alambrado de metal. Penso no Fluminense dos pretos, brancos, nortistas, sulistas, até um índio guarani fantástico correndo como um louco. Éramos uma procissão de corações em busca da bola, da verdade e da simplicidade – bandeiras unidas. Os amigos das arquibancadas, alguns que eu tanto admirava à distância e hoje me dão abraços de irmandade que cheira a talco, aquele que nos inebriava em nuvem de esperança a cada vez que o time subia a escada, saía do túnel e carregava uma bandeira até sacudi-la no meio-campo. Eu penso em Assis e Washington. Quando a linha do céu de Barueri foi a rosa dos ventos, eu pensei em Assis e Washington. Até mesmo quando aquele último pênalti foi batido em 2008 eu pensei em Assis e Washington. Não importam as poucas derrotas e nem mesmo o mar das vitórias: acontece que quando aqueles dois deuses pretos da elegância passaram a pisar nos gramados com a nossa camisa, o Fluminense foi Fluminense demais – charme, conquista, simplicidade, afeto, tradição e alegria. Dois garotos pretos pulando sem sair do lugar, trocando palmas e fazendo da foto de um gol o paraíso. Até hoje os procuro em campo, também procuro na beleza concreta e cinzenta da arquibancada o menino pobre e feliz que eu era. Dois garotos pretos dos cantos do Brasil, navegando no mar da felicidade por causa de uma sagrada, abençoada e monumental bola de futebol – na verdade, ela é um coração redondo que se alimenta correndo pelo sangue na grama verde das nossas memórias. Basta.
Dedicado a todos os tricolores que riram e choraram com as histórias de Assis e Washington, Castilho e Nelson Rodrigues.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
Imagem: placar
#SejasóciodoFlu
Paulo não para não. A história das letras lhe espera de braços abertos. Poesia e prosa impecáveis. Nelson Rodrigues, que era mais chegado a leitura dentre eles, deve ter chamado Castilho, Assis e Washington e mostrado. Leu para eles com aquela voz de quem tem uma bola de tênis de mesa na boca. No final todos gritaram: “Obrigado, valeu Paulo”.
O dom de escrever, a inteligência em juntar palavras certas, a habilidade da rima, a alegria do lápis, o carinho com o papel. Nada disso seria útil sem a gratidão com seus (nossos) deuses pretos.
Sensacional! Emocionante! Genial!
Poema lindo. Devia mandar aos parentes dos jogadores.
Meu deus!
Devemos apresentar nossos ídolos aos jornalistas da Rádio Globo, Senhores Eraldo Leite, Rafael Marques e Sérgio Du Bocage, para que definitivamente parem de fazer chacotas com o pioneiro do futebol no Rio de Janeiro e no Brasil. Que eles agora entendem de uma vez por todas. “NÓS SOMOS A HISTÓRIA!!!’
Abraços e ST.
Amigo Andel, desta vez você se superou. Simplesmente divina sua crônica.
Mais uma vez me levando às lágrimas. Assim meu coração safenado não aguenta.
Saudações Tricolores daqui de terras baianas.