De Super Ézio a Tom Waits (por Paulo-Roberto Andel)

Tinha acabado de almoçar e voltei ao trabalho. Coloquei “The Black Rider” para tocar, álbum de Tom Waits lançado em 1993. Tom é o grande bardo da canção americana, um dos maiores da história e, para muitos, o último dos beatnicks. Gosto dele, de seu som “sujo” e misturado a blues e jazz, a bares vazios da madrugada.

Comecei a ouvir Tom Waits na faculdade, em fins dos anos 1980. Um amigo, o Adolfo, tinha as fitas. Escutávamos no hall ou em viagens. Os amigos e principalmente as amigas meio que se assustavam quando Tom subia literalmente o tom – era quase um latido. A gente ria e alguém dizia “esses garotos são malucos”.

Essa época da faculdade foi muito boa para mim por vários aspectos, sendo o principal deles um sentimento de esperança: você é jovem, está ingressando no mercado de trabalho, desenhando o que pode ser seu futuro. Havia uma turma boa, amigos divertidos, meninas lindas e muito, mas muito Fluminense. Todo dia eu via o Maracanã e posso assegurar: toda vez que ia para a faculdade, avistar o estádio dava o mesmo arrepio de criança. São muitas coisas reunidas. Laranjeiras também, um clima de pertencimento, de família.

Era um tempo em que o Flu sofria, mas a gente estava lá. Disputou vários títulos, bateu e bateu na trave. Foi roubado. Foi inferior. Não importa: brigou como time grande. Os anos se passavam e ficávamos preocupados: quando seremos campeões. Levou nove anos, mas quando aconteceu foi inesquecível. E o grande nome dessa primeira metade dos anos 1990 é Super Ézio, sem dúvida. Maravilhoso. O mais humilde de todos os ídolos tricolores.

E não é que na terceira ou quarta música do Tom Waits aparece um vídeo do Ézio no Instagram? Senhor! Carlos Lopes, artista genial e meu querido amigo, diz que tudo tem conexões. Eu tento entendê-las. O que sei é que essa mistura de Tom Waits com Ézio para um tempo muito especial, de mais de 30 anos, quando eu nunca via minha mão enrugada como agora. Talvez só eu mesmo pudesse misturar dois personagens tão distintos, mas estou aqui para isso mesmo: fugir do óbvio. Desafiar os idiotas da objetividade.

É difícil tentar traduzir o que era ser Fluminense nessa época, mas o que posso dizer é que eu me sentia muito bem porque tudo indicava que tínhamos futuro. Eu mesmo, que me sinto praticamente morto em vida, me sentia cheio de atitude e com tanta coisa a fazer. Meus pais eram mais jovens do que eu sou agora, e meu irmão era uma criança. Tínhamos uma identidade. Éramos Super Ézio. Éramos luta e muita esperança.

Mais de trinta anos depois, aqui estamos. O mundo é outro. O Fluminense é outro. Daquele tempo que me pareceu bom só ficaram as lembranças. Agora o que me parece é que o bar fechou, ainda é madrugada, eu estou bem mas simplesmente não tenho para onde ir. Sem casa, sem família, feito um fantasma das ruas cada vez mais desertas da cidade, violenta e ameaçadora.

Os idiotas da objetividade só se alimentam de “infos”, só raciocinam o imediatismo. Não percebem que nossa maior derrota através dos tempos tem sido a da perda da identidade. Para as mentes mais primitivas, a SAF resolve tudo. Ou trocar o treinador. Tudo um passe de mágica. Os mais boçais acham que tudo se resolve colocando um bilionário na presidência, como se estivesse disposto a torrar sua fortuna por amor ao Flu. Aliás, alguém precisa explicar a esses caras que um investidor é alguém que coloca dinheiro para ganhar em cima da aplicação – não para doá-lo-, e que isso pode ou não significar conquistas. Claro que pode: a base do time campeão da Libertadores 2023 é do time que caiu ridiculamente na fase de grupos de 2022. As coisas boas podem acontecer, até mesmo com gestões patéticas como a atual.

Tentarei ser mais claro: o problema do Fluminense é muito maior do que sete derrotas seguidas para o Botafogo, uma campanha pavorosa no Carioca 2025 e uma quase queda no Brasileiro 2024. É de perda de identidade. Isso afeta todo o resto e serve de justificativa para as ações mais cretinas. Estamos assim há mais de dez anos e, tirando o efêmero 2022/2023, as coisas voltaram ao normal de hoje, que é anormal para a história do Fluminense.

Afinal, torcemos para um time de futebol ou uma agência de compra e venda de atletas que é associada a um time do passado?

Por fim, vamos parar com essa idiotice de que os críticos torcem contra o Fluminense. Quem torce contra quis a troca do John Kennedy pelo Paulo Baya. E queria que o Fluminense bancasse o Rony para sustentar o salário do Paulinho no Palmeiras. Esses sim torcem contra.

Para o Fluminense voltar à altura do seu passado é preciso entender que o clube não nasceu em 2023, e que a casa precisa ser arrumada sem a dependência de um imperador, banqueiro ou coisa parecida. Exige dinheiro sim, mas também competência, bom caráter e inteligência – hoje valores muito raros no clube.

Foi bom ver Ézio no vídeo, é como rever um grande amigo. O disco do Tom Waits acabou. Há uma longa tarde e noite pela frente. Mas eu vou contra o Boavista, só para tentar imaginar o que era o Fluminense do meu tempo.

O tempo.

1 Comments

  1. Excelente análise. A perda da identidade de uma corporação ou instituição leva a morte. O Fluminense durante grande parte de sua história foi protagonista no cenário estadual, nacional e internacional. Um vencedor. Eis a sua identidade. Para vencer tem que atacar, fazer gols e vencer. Esse grupo atual acuado na sua intermediária, defendendo com onze e sem qualquer estratégia ofensiva, não é mais o Fluminense. Saudações tricolores!

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