Parafraseando o grande intelectual Darcy Ribeiro, a decadência do Fluminense e o reducionismo da identidade tricolor não são apenas um “problema de gestão” como muitos afirmam categoricamente, mas, fundamentalmente, trata-se de um ambicioso projeto de grupos políticos que assim o sugestionam há, pelo menos, algumas décadas essa perspectiva.
Como toda agremiação que se preze, há grupos políticos internos que se movimentam, ora em acordos de proximidade e distanciamento, seja na situação ou na oposição, algo caracterizado a partir de uma constituição histórica de qualquer instituição. Embora a etimologia do termo política derive da Grécia Antiga e tenha relação com Cidades-estados gregas, a sua prática tem relação direta com a vida em sociedade. Uma tomada de posicionamento é política, até mesmo as que se dizem neutras, em suma tudo é político. Se buscarmos no Novo Testamento da Bíblia, por exemplo, o julgamento de Jesus é político, pois havia em jogo naquele contexto uma ameaça ao Império Romano, conforme seus carrascos julgavam. Alguns se opuseram a essa afirmativa, outros a aderiram, alguns não se posicionaram, logo, estavam do lado da maioria, assim é a política.
No Fluminense não é diferente, tudo é político, assim como a deliberada crise do clube. Para entender a origem dessa crise e as movimentações políticas, deve-se buscar historicamente sua gênese, que se remonta brevemente a década de 1950. Dois elementos serão fundamentais para tal determinação: a) construção do Maracanã e; b) a Taça Olímpica. É importante destacar que dada as condições da época, até meados desse período acima, o Fluminense era uma agremiação que conviviam harmoniosamente futebol, esportes olímpicos e social. Cada fração era indissolúvel e tinha seus braços fortes na cultura, decisões republicanas e, principalmente, esportes. Estamos falando de uma burguesia carioca no auge de um Brasil nacionalista-getulista. Nem mesmo a construção do poderoso Estádio de São Januário tirava o brilho do estádio mais antigo do Brasil: Laranjeiras.
Porém, a construção do Maracanã representaria uma nova era do futebol brasileiro. Sua nacionalização mais intensificada, demandas profissionais cada vez mais complexas e participação dos torcedores nas decisões dos clubes. Paulo Coelho Netto e Nelson Rodrigues alertaram em seus escritos da necessidade do Fluminense se reinventar, formar novos quadros, ou o clube viraria um “local recreativo de piquenique”. Demanda ignorada e, salvo algumas exceções isoladas de presidentes como Horta (1975-1978) ou Schwartz (1984-1987), o clube não investiu em novos quadros políticos.
Uma outra questão foi a tão cobiçada e comemorada Taça Olímpica em 1949 na gestão de Fábio Carneiro de Mendonça. Esse monumento reforçou uma perspectiva interna de que os Esportes Olímpicos deveriam ser encarados como prioridade no clube, dando protagonismo a uma ala conservadora representada, principalmente, por Preguinho (cabe ressalte, também, por João Havelange), que trazia contigo uma proposição distanciada dos novos tempos do futebol, que se popularizava a níveis largos. Desde então, as frações dos Esportes Olímpicos e Social viriam ter protagonismo isolado junto a política interna do clube, com um recrudescimento de peso, enquanto o futebol foi tomando um caminho lateral as decisões internas.
Até o ano de 2010, essa demarcação era evidente, o futebol sempre se opôs a aliança que se construía entre EOs e Social. O incômodo da presença de torcedores exigindo resultados sempre foi um empecilho para planos de transformação do clube num mero “local de piquenique”. A burguesia falida de uma outrora Laranjeiras decisiva até os anos 1970, se apegava ao aparato, como a nobreza medieval se apegava aos seus feudos no final do XVI. O clube se transformava naquilo que Coelho Netto e Nelson Rodrigues alertaram. A oposição era o futebol, sempre massacrado, mas muito rentável para determinados setores internos.
A década de 2010 é chave para compreender uma derrocada cada vez mais intensa do Fluminense. O ethos do grupo político Flu-Sócio demarca uma cômoda pactuação do futebol com os outros setores. A partir disso, a oposição no clube vai se definhando pouco a pouco, muito, em parte de um estatuto obsoleto e favorável a situação. Nessa nova dinâmica, se incorporam discursos catastróficos de dívidas, para escamotear negociações com jogadores de futebol medíocres e lotear departamentos internos a partir dos boletos de campanha estabelecidos por EOs e Social. A verborragia se transforma numa ferramenta decisiva para encantar “serpentes” de torcedores pouco familiarizados com questões políticas internas.
O aspecto mais decisivo é o patrimônio simbólico de Laranjeiras, no seu estádio, abandonado em sua função de ouvidoria de torcedores. Os empecilhos para a reforma do estádio trazem consigo uma determinação simples, seu esvaziamento e a paulatina desfiguração (algo similar ao Museu Nacional). A queda de Sócio-Torcedores é a cômoda condição de menos intervenções no pleito, conselhos escusos são a forma de dar sequência a acordos, recortes de personagens em títulos determinam heróis coniventes com a situação.
Qualquer desavisado poderia compreender essas questões como uma mera trapalhada de gestões, mas não, o que está em jogo é um projeto construído há décadas do enfraquecimento do futebol do Fluminense (os mais extremistas falarão em fim do futebol, mas lembremos que o mesmo ainda tem uma função rentável para alguns, portanto, a manutenção na Série A é o suficiente).
Logo, o Fluminense não vive uma crise, mas sim, trata-se de projeto.
Panorama Tricolor
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