Corações valentes (por Paulo-Roberto Andel)

 

hojeeeeeeeeNaquele 21 de maio de 2008, enquanto o Fluminense fazia um dos maiores gols de todos os tempos, eu chorava porque meu pai Helio Andel jazia em seu sereno leito de morte, vitimado por um infarto fulminante uma hora antes daquele jogo imortal. O Rio era uma festa enquanto eu só via luto.

Cinco anos e meio depois, o raio caiu duas vezes no mesmo lugar – mas sem féretro. Não pela chance de um grande título, não é o caso, mas por algo muito maior – a nossa permanência na primeira divisão do campeonato brasileiro. Outra vez no último minuto, outra vez contra o São Paulo – mesmo que não tenha sido exatamente o momento derradeiro.

Um gol no fim do jogo precisa ser sorvido, saboreado, refletido. Ele atravessa anos e décadas. Doval em 1976, Assis em 1983/1984 e Renato Gaúcho são exemplos clássicos. Washington e seu coração valente naquele 2008 também. O herói de ontem foi Gum, inesperado por conta da má fase recente, mas com estofo desde os tempos do time de guerreiros, vide os dois importantes gols contra o Inter em 2009. Até fazer o gol de cabeça que decidiu o jogo contra o São Paulo ontem, Gum vinha num momento claudicante, o pior desde que chegou ao Fluminense. E aí está a mística que cerca as coisas deste time: o zagueiro que vinha muito mal acabou sendo o garantidor de três pontos essenciais.

Num jogo em que correu e brigou muito, o tricolor sentiu o baque com o gol de Welliton logo no começo, em mais uma bobeada do setor defensivo. Mas só por alguns instantes. Então veio a bomba de Jean no travessão, a sobra, o chute distante de Samuel com rebote de Dênis e, finalmente, o gol de cabeça do nosso meia, subitamente recuperado em termos físico-técnicos desde a chegada de Dorival, assim como Wagner. O empate ficou justo entre a luta do Fluminense e a implacável marcação são-paulina comandada por Muricy.

No segundo tempo, emoções. Briga, luta, drama e a necessidade de um gol contra o descenso. Idas e vindas, o São Paulo ameaçou pouco, a trave atrapalhou os caminhos do Fluminense. Rhayner, caindo mais do que jogando, e Samuel, no estilo-padrão, deixaram o jogo. Biro-Biro entrou e incendiou a esquerda. Marcelinho foi um lutador. A batalha era constante, mas o gol não vinha. O ataque chegando um segundo depois do cruzamento. Sobis acertando o poste. Terrível.

Quando tudo parecia perdido, 2008 renasceu. Depois da cobrança de escanteio da esquerda no fim do jogo, Gum voou e raspou de cabeça, vencendo Dênis, mantendo o Flu fora da degola e derrotando não apenas o São Paulo, mas também todos os que rezaram, de alguma forma, a cartilha do “quanto pior, melhor” – não haverá nenhuma camarilha de volta, tenham certeza. Não venham com a conversa fiada do São Paulo reserva: ninguém joga com Jadson e Osvaldo para se poupar. Não me venham discutir técnica e tática: somos UTI, coração e pulmão a mil, a luta pela sobrevivência. E basta.

O Fluminense vibrou nas veias de suas arquibancadas quando a vitoriosa volta de Conca foi anunciada nos telões do Maracanã. Depois, os admiráveis maníacos berraram como nunca e empurraram o time para a frente, mesmo com as visíveis limitações. Por fim, um velho novo herói fez-se gigante de berço esplêndido com o gol definitivo. Se Hélio estava lá de algum jeito, não soube dizer: apenas senti.

Uma das nossas grandes vitórias. Com brilho, talento, estilo? Não. Simplesmente a garra incomensurável de quem se recusa a morrer. E também a elegância sutil de Cavalieri, um dia já dedicada a Bobô por Caetano Veloso, em passos calmos, rumo à menininha que pediu sua camisa de presente num cartaz na arquibancada e foi devidamente compensada. A calma de Cavalieri é a bandeira branca da paz que precisamos. Mas os corações valentes ainda pulsam como nunca desde a noite de ontem: embora o Rio tenha passado por noites antológicas de jazz nos shows de Branford Marsalis e Al Jarreau, o que não me sai da cabeça é a voz (doce) de Aimée Mann cantando ao lado de Geddy Lee – “Time stand still” – “Time stand still”.

Os números ainda não são definitivos, ainda há muito a fazer, mas as vitórias sobre Náutico e São Paulo foram claras fotografias de um time sedento pela reabilitação. O Fluminense não vai morrer, o Fluminense é a vanguarda do futebol brasileiro  e, por isso, se a matemática ainda não o salvou definitivamente, em termos morais e psicológicos o time deu um senhor pontapé no traseiro do descenso. Helio também vive. E ri. Eu também.

Somos todos corações valentes.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: PRA

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peter mais tres

4 Comments

  1. Caro Andel,
    Parafraseando nossa torcida. ” Apenas o que sentimos justifica o que escrevemos”. PARABÉNS!!!

  2. Memorável sua crônica. Acrescentando só uma frase que escuto mais nesses momentos onde precisamos de luta, raça, suor e amor. O Fluminense somos nós!

  3. Esses últimos meses a ansiedade misturada com o sofrimento de empates e derrotas têm deixado a TORCIDA TRICOLOR triste e/ou revoltada… ontem mais uma vez GUM, depois de muitos sustos, nos deu a alegria de 3 pontinhos importante. Ah… vale a pena agradecer ao juiz que deixou de marcar o penâlti a nosso favor e por isso não deu outro cartão amarelo ao GUERREIRO GUM. ST!

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