A última coisa que me lembrava era de Gabriela. Mais precisamente, de me despedir dela e entrar na Stalos, como fazia sempre que escapava de sua casa, de madrugada. Basicamente para repor carboidratos e sais minerais após a maratona que ela me fazia correr entre suas coxas bronzeadas, quase magras, quase perfeitas. Lembro de entrar na padaria, olhar o Whatsapp rapidamente, e mais nada. Nem um traço do seu perfume ou do seu sabor.
Dor de cabeça enorme. Aguda, daquelas que irradiam do topo do crânio e caem como uma cascata. Abro os olhos e minha vista está embaçada. Como se em um túnel, uma luz e um som crescentes. Da névoa amorfa surgem tons de cinza, e da estática emerge um barulho muito familiar. Estava cercado de paredes de cimento. Alguns chapiscos. Uma escada estreita. Luz amarelada, fraca. Acho que já estive aqui, mas…estranho. Tento me levantar dos degraus quando algumas pessoas passam correndo, subindo, gritando. Não deu para reparar muita coisa, mas…
Hyundai. Nossas cores. Pouco depois, mais duas flechas voam em minha frente. Lubrax. Aquelas cores. Não fazia sentido. Ou fazia demais. Cara, a dor de cabeça tá passando, mas acho que vou desmaiar. Não quero acreditar no que estou vendo. Não é possível. Fecho os olhos e tapo os ouvidos. Dois, três, quatro, cinco…vinte. Abro-os e vejo a mesma escada. Pessoas subindo. Não, não dá. Vou subir essa porra de escada. Aonde isso vai dar?
A cada passo, o barulho aumenta. Confuso, não consigo entender os berros. Eram cantos, mas que se entrelaçavam. Uma curva a mais, mais nítido. Não, não, cara, não tomei nada que pudesse me fazer isso. Mais um lance e, finalmente, uma porta. Já conseguia entender os sons, suas diferentes fontes. Um cheiro de queimado. O tremor nas paredes. Medo de abrir, de sair daqui e ver o que acho que verei. Ao mesmo tempo, já fantasiei algumas vezes rever isso. Cara, muito estranho. Essa porra não parece um sonho. Eu sinto a sujeira, a poeira, a eletricidade, a tensão. Meu coração acelera. O que tá do outro lado pode significar que fiquei completamente louco. Penso em voltar. Penso em fechar os olhos. Penso que isso não pode ser real. Me congelo. Não sei o que fazer. Quando, de repente…
Aquele som que você conhece. Que eu conheço. Que define parte da minha vida. Que me traz sentido nas piores horas, e que simboliza grande parte da minha identidade. Sei que é o nosso, pois o que treme é o lado direito da parede. A porta até chacoalha, como se me implorasse para abri-la. Não resisto. Ainda está na crescente. Fechos os olhos e estico os braços. Subo dois, três degraus, parte plana, acelero, e…
Não posso acreditar no que estou vendo. E choro. E grito. E grito mais. E abraço estranhos.
Sim. Isso está acontecendo. De novo. Mas…tem algo diferente.
Panorama Tricolor
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Imagem: dv/a