Antonio Coragem e João Valente eram amigos de infância, daqueles inseparáveis. Seus pais moravam na mesma vila e os dois tinham a mesma idade. Começara a amizade nos primeiros passos, batendo bola nos muros das casas da vila de classe média de São Cristóvão, tradicional bairro carioca, com grande vocação industrial na década de 70.
Cresceram juntos, estudaram na mesma escola, jogavam no mesmo time de peladas, iam e voltavam juntos, todos os dias. Antonio sempre foi mais tímido, mais caladão. João sempre falante, extrovertido, desembaraçado, sonhador, cheio de ideias e sonhos. Vivia prometendo ao amigo João que seriam famosos um dia, que fariam algo diferente e que marcariam seus nomes na história. João sonhava e Antonio planejava.
Na adolescência, João resolveu que iria inscrever o time da vila no campeonato de bairros promovido por um jornal esportivo. Saiu pela vila chamando os amigos e bradando que o time seria campeão, que eles eram bons e que conquistariam a cidade. João gritava, contava sobre o campeonato, sobre os campos os prêmios. Antonio enquanto isso, pegou o regulamento, fez orçamento dos uniformes, viu as datas, pesquisou como iriam se deslocar. Criou uma lista e saiu angariando fundos com os comerciantes locais, vendendo cotas de patrocínio. Conseguiu nas padarias os lanches, numa fabrica de tecidos os uniformes, com uma empresa de ônibus conseguiu o transporte e assim foi.
O time realmente era bom, João era o centroavante, fez muitos gols. Antonio jogava bem, mas varias vezes deu sua vaga a outro colega para ficar de treinador, orientando a equipe, cuidando da estratégia, assistindo aos jogos dos adversários, atuando nos bastidores.
Foram campeões num jogo difícil, num domingo de sol. Para sorte deles, a final foi no campo do São Cristovão, vizinho a vila onde moravam quase todos os garotos do time. Puderam contar com grande torcida a seu favor. Ao final a volta olímpica, João carregado nos braços, tirou fotos e arrancou olhares apaixonados das meninas. Antonio correu para os braços dos pais, comemorou com eles o feito de adolescente.
Os anos se passaram, os garotos cresceram, foram para faculdade. João escolheu fazer Comunicação e Antonio foi para a Engenharia. Antonio se formou em tempo recorde, e João se formou no Grêmio, no DCE, nas festas. Muitos diziam que João nunca nem se matriculou, apenas frequentou o ambiente, para se familiarizar com o meio, curtir aquela vida sócio-acadêmica. João jura que era boato e intriga da oposição.
Aos vinte e cinco anos de idade, João chamou Antonio e contou para ele a grande ideia que faria com que os amigos ficassem famosos. Construir um barco com as próprias mãos e sair velejando pelo mundo, só os dois, parando de porto em porto, sem obrigações ou maiores compromissos. Apenas fazendo história, fazendo amigos e acumulando experiências.
João logo conseguiu espaço nos jornais para contar a ideia, enquanto isso, Antonio correu atrás dos recursos. Desenhou um projeto, vendeu cotas de patrocínio para empresários. Desenhou ele mesmo barco e construiu praticamente com as próprias mãos. João sempre dava entrevistas posava para fotos e Antonio ficava nos bastidores. Devido aos nomes comuns, a mídia logo começou a chamá-los pelos sobrenomes. Valente e Coragem. Como Valente era sempre aquele que aparecia nas TVs, Rádios e Revistas, talvez pela sonoridade ou por maldade mesmo, Antonio ficou mais conhecido como Covarde, do que como coragem. Talvez uma maldade advinda do antagonismo entre suas personalidades.
Alguns meses depois partiram pelos oceanos os amigos Valente e “Covarde” com direito a cobertura da televisão, que logo adotou para Antonio o pejorativo apelido. Antonio não se incomodou, era de paz e sua consciência era seu guia e seu juízo e com ela vivia em paz.
E lá se foram cinco longos anos de viagens marítimas. Muitos lugares famosos ou lugarejos e sempre a mesma rotina. Muita conversa em alto mar, escreviam muito, navegavam, fotografavam. Faziam planos para quando a viagem terminasse. Antonio dizia que se casaria e teria três filhos. João Dizia que ia curtir a fama, fazer um filme, ou passar a vida contando histórias em programas de Televisão. Talvez angariasse fundos para um filme, o que ele sabia que só seria possível se Antonio entrasse no projeto.
Quando estavam atracados, Antonio cuidava das burocracias, da manutenção, dos mantimentos. João se acabava nos bares, boates, em bebedeiras e farras com mulheres. Tirava fotos com prefeitos, e políticos oportunistas. Visitava a casa dos ilustres e se gabava de suas aventuras marítimas.
Resolveram um dia que era hora de voltar para casa. Rever os pais, voltar a vida em solo firme e seguir cada um com seus planos. Tomaram o rumo da cidade maravilhosa.
Há pouco tempo de chegar ao destino, o barco de João e Antonio enfrentou uma tempestade. Já haviam enfrentado outras tormentas, mas nenhuma tão forte e impiedosa. Tentavam com bravura controlar o barco e vencer a força dos ventos e das águas. Uma onda mais forte jogou nossos amigos contra uma pedra, um buraco no casco, logo a água começou a invadir o convés.
Antonio correu e pegou o bote inflável preparado para uma emergência. Ativou-o e preso por um cabo lançou o bote ao mar. Mandou que João fosse ao bote que ele iria em seguida assim que ele estivesse seguro. Seria necessário desatar o nó que prendia o bote ao barco. João hesitou, mas após o amigo jurar que iria em seguida, foi ao bote. Antonio soltou o nó, e olhou calmamente o amigo se distanciar. Antonio sabia que não teria como soltar o nó e chegar ao bote naquela tempestade. O vento levou o desesperado João para longe do barco que ia afundando apressadamente. João gritou pelo amigo e chorou até que as forças lhe faltaram e ele adormeceu em meio a escuridão da noite. No outro dia pela manhã, João foi resgatado pela Capitania dos portos. Antonio havia pedido socorro pelo radio e dado suas coordenadas antes do naufrágio.
João chegou em terra firme, procurou sua família e de Antonio. Choraram juntos as homenagens. O barco foi encontrado, mas o corpo de Antonio não.
João escreveu um livro, vendeu os direitos autorais a uma emissora de televisão, deu metade aos pais de Antonio, com a outra metade comprou outro barco. Batizou-o de Antonio Coragem, partiu para o mar, prometeu contar em cada porto a história do mais fiel e corajoso homem que já conheceu. João entendeu que coragem é muito diferente de valentia, ou de fama, ou glória e por essas terras nunca mais foi visto.
Panorama Tricolor
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