Era criança quando os militares e a força civil que apoiava a ditadura começaram a dar sinais de que não conseguiriam segurar o comando do governo mão-de-ferro. Boa parte da obra da ditadura, no entanto, já havia sido consumada, com a grande guinada do país à direita que abortou a esperança da década de 1960 de reproduzir aqui um capitalismo menos infame. Os germes do serviço de saúde privatizado, a destruição da educação pública e a orientação da economia a favor dos grandes grupos produtivos e financeiros internacionais eram os principais coveiros de qualquer projeto menos elitista ou excludente para o Brasil.
Restava, contudo, o sopro de esperança da restauração democrática, uma brisa suficiente para acalentar o sonho do país do futuro. Vivemos, desde então, uma eterna transição democrática, que nos entrega, vez por outra, sonhos de conquistas apenas para destruí-los no mês seguinte. O resultado é desalentador: hoje não há no cenário político um único grupo capaz de arregimentar as massas em torno de um projeto que nos dê uma figura de futuro melhor, seja qual for essa figura. O país do futuro prendeu-se no eterno presente até ficar sem futuro vislumbrável.
Tenho a impressão de que o Fluminense esteja passando por um processo semelhante. Há diferenças importantíssimas, é bom que se diga: enquanto a ditadura pegou um país cheio de possibilidades e as abortou, o cenário atual do Fluminense foi construído numa ausência de possibilidades, que foram então multiplicadas. A semelhança a que aludo parte desta diferença crucial, mas se apresenta sob a forma do sentimento da eterna transição.
A gente ganha uma Copa do Brasil, chega às finais da Libertadores e da Sul-americana, ganha dois Brasileiros em 3 anos, tem conquistas importantes na organização e na estrutura do clube. Mas, passado três anos da última conquista, parece que continuamos em transição para um futuro que nunca chega. Continuamos lutando contra o rebaixamento, continuamos sendo eliminados ridiculamente na Copa do Brasil, continuamos fora da disputa do carioca, continuamos sem a entrega da esperada estruturação definitiva do clube.
É pouco tempo para um atraso construído em mais de meio século? Possivelmente sim. Mas nem conquistas no campo? Isso outros clubes conseguiram em situação idêntica à nossa, e posso mencionar aqui desde Atlético Paranaense até Sport, para ficar em dois times médios do cenário nacional e gigantes em suas áreas de influência direta. O Fluminense está fora do circuito local e hoje parece incapaz de alcançar projeção nacional e internacional.
Quando vem um Cristóvão e faz o time jogar por música, todos nos animamos: a transição acabou. Depois desanda tudo de forma tão rápida quanto antes a magia se fez. O mesmo efeito vimos ocorrer no período Enderson: magia, esperança e frustração. Não acredito que possa ser fortuito, não pode ser apenas incompetência do técnico ou desleixo do grupo. Tem algum mistério no fazer e desfazer do sonho, principalmente na velocidade em que acontece. Será que são apenas os inimigos externos, realmente poderosos: o Globo, a Ferj, rivais cheios de ódio, a mídia? Nós em nada contribuímos para o milagre da frustração instantânea?
O fato é que o resultado é o de sempre: o sentimento de que a transição não acabou. Isso é dito, aliás, para justificar cada fracasso: temos dívida, o clube estava depauperado etc. etc. etc. Mas alto lá: Horcades já saiu há 6 anos, a série C ficou para trás há 16 anos, mais de uma década. Quanto tempo vai demorar essa transição? Foram 50 anos para destruir lentamente o clube, serão necessários outros 50 para reconstruir? O que a gente faz no meio do caminho, não ganha nada, nem um carioquinha? A gente vai alimentar a torcida de quê? Vai ter volta olímpica na reunião do Conselho Deliberativo para mostrar o balanço no azul?
Agora, alto lá: nosso time não é tão mau assim, nem tão barato. Não há o que justifique um desempenho como o que temos desde que conquistamos o Brasileirão em 2012. Um clube como o Fluminense não pode ficar três anos sem qualquer conquista, simplesmente não podemos nos acostumar (mais) a isso. Quando o time era aquele da década de 1990, três anos era pouco, mas, com o elenco que temos, isso não pode ser cogitado ou aceito. E não vou falar nem de oito derrotas em 10 partidas. Isso é desempenho de Íbis, mas não de Fluminense.
O culpado é o técnico? Demitam. É o grupo? Mandem embora quem está atrapalhando. É o vice de futebol? Demita. É o presidente? Renuncie ou chame ajuda. Não nos importa saber quem é o culpado, quem contribui para essa situação. O ponto é resolvê-la o quanto antes. Não se constrói uma transição para o futuro sem os pés no presente. Se acabarmos com o presente do Fluminense, não haverá quem possa usufruir de seu futuro glorioso.
Panorama Tricolor
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