A SAF, o Fluminense, o Cruzeiro, o Ronaldo e o paraíso dos corneteiros (por Wagner Victer)

Tenho visto nos últimos dias um grande frenesi pela operação coordenada pelo Banco XP, que culminou com a entrada do craque Ronaldo Fenômeno na operação de “salvação do Cruzeiro”.

As pessoas ficam nas redes sociais achando que o modelo amparado pela nova Lei Federal 14. 193/21 é a grande tábua de salvação, um momento novo e que se deve embarcar imediatamente, mas sequer conseguem raciocinar o que representa a operação da chamada criação da SAF – Sociedade Anônima do Futebol, como se fosse algo que surgisse como uma jabuticaba empresarial.

Primeiramente, é importante esclarecer que a criação da SAF nada mais é do que uma operação muito tradicional do segmento empresarial societário que é a criação de uma SPE – Sociedade de Propósito Especial ou, como se chama no inglês, uma SPC – Special Purpose Company, com o objetivo definido e com os ativos e dívidas segregadas daquela empresa que conduzia a operação original. Aliás, a própria nova lei deixa claro isso, pois já no seu artigo 1º, sujeita o regime da SAF às regras específicas da tradicional Lei das S.A (Lei 6.404 de 1976).

Essa empresa logicamente já parte tendo uma Certidão Negativa de Débito (CND), pois muitos diziam que isso não seria possível, e até seria uma situação limitante à criação. Logicamente para isso, a SAF não carrega na sua formação societária o conjunto de dívidas existentes na sociedade original. Na prática se cria uma “empresa limpa” enquanto os passivos ficam na empresa antiga (o clube originário).

Numa simplificação da explicação, o que se criou muita confusão especialmente no caso do Cruzeiro com o depoimento meio “confuso” do Ronaldo, é que os passivos tendem a ficar com a empresa antiga (artigo 10), que alguns também chamam no mercado de “empresa podre”, ou seja, o “Cruzeiro antigo”. Esses passivos, porém, podem ser renegociados e saldados progressivamente a partir da remuneração que será uma parcela da receita da SAF, normalmente algo da ordem de 20% das receitas (artigo 10 – inciso I) e também a partir dos dividendos, que nesse caso foram fixados na Lei em 50% que é o lucro da operação da nova empresa (artigo 10 – inciso II).

Nesta modelagem, que logicamente foi feita para o Cruzeiro, me parece portanto prematuro e até estranho falar que Ronaldo Fenômeno, ou quem ele representa, entrará como solidário em todo passivo, ou seja, como ele tem 90% da SAF que ele também teria responsabilidade pelos 90% do passivo. Duvido muito que isso aconteça, não só pelo artigo 10, Inciso I, da Lei já que se houvesse aquisição ou compra, com o passivo anunciado como sendo da ordem de 1 bilhão, o Cruzeiro sequer valeria 1 real para a sua aquisição e não os chamados “400 milhões”.

Também não acredito que os anunciados 400 milhões sejam pagos diretamente ao Cruzeiro antigo, ou seja, ao “clube podre”, mas que entrará como um aporte ou como um percentual referente ao pagamento da criação da SAF. Com isso renegociando parte dos passivos de curto prazo de cruzeiro antigo e um outro percentual desses 400 milhões seria investido na operação inicial do chamado “novo Cruzeiro”. Logicamente com o tempo e somente quando acontecer o chamado “disclosure” dos contratos dessa operação, isso possivelmente, será constatado, o que, aliás, os sócios proprietários do Cruzeiro antigo têm que ter acesso.

Pra dar uma mera simulação, considerando que a dívida do Cruzeiro seja da ordem de 1 bilhão, o que requer um “due diligence” mais aprofundado, mesmo que com os novos recursos e uma negociação competente talvez possam ser reduzidos da ordem de 40%, o que seria necessário uma geração de caixa de transferência da ordem de 120 milhões de reais líquidos para o abatimento integral desse passivo nos próximos cinco anos, o que é a meu ver um desafio que considero extremamente difícil, para não falar impossível, mesmo com essa disponibilização de 20% das receitas do SAF e 50% dos dividendos, até porque a nova SAF também terá que fazer seus investimentos operacionais.

Outro aspecto que deve ser considerado é que, certamente na operação, e que ainda não ficou claro é que todos os direitos relativo à formação de jogadores deverão pertencer à SAF (artigo 1º , 2º , inciso II) , ou seja, numa modelagem em paralelo com o Fluminense, todos os jogadores produzidos em Xerém não pertenceriam mais ao Fluminense antigo, mas sim a uma SAF, até porque seria uma garantia de receita para a nova operação e até uma blindagem, o que não deixa de ser positivo contra os zangões que atualmente operam os centros de formação de jogadores.

O fato é que uma operação como essa para a criação da SAF tem que ser aprovada pelo clube antigo através de seus sócios proprietários com modificação estatutária a partir de uma Assembleia Geral, e tendo a consciência que na prática os sócios do Clube, especialmente os sócios proprietários, não terão mais qualquer direito em relação ao “Cruzeiro novo” que não seja uma eventual representação em Conselho em função da participação acionária que seria mantida novo Clube (SAF), e como foi divulgado na mídia seria algo da ordem de 10%. Essa participação seriam as ações ordinárias do “tipo A” previstas no artigo 2º, parágrafo 2º, inciso VII. Ou seja, um acordo de acionistas irá definir como essa participação será feita, mas obviamente terá a participação minoritária e sem qualquer representatividade para uma decisão final como escolha de executivos que vão comandar dali para frente o futebol, venda de jogadores, se limitando a blindar contra situações como mudança de escudos, cores de camisa, hinos e outras questões que, aliás, podem acontecer pois tem até previsão na lei.

Há aspectos também positivos na criação da SAF, como a retirada do sentido de patrimonialismo e amadorismo existente na gestão de clubes, aliás, que muito acontece em casos como o Fluminense. Logicamente os acionistas da SAF não permitiriam práticas heterodoxas como, aliás, naturalmente tem acontecido e fatos inexplicáveis como aquisição de jogadores em preços elevadíssimos e talvez o grande case recente tenha sido o Caio Paulista, ou aquisições que comprometem passivos, como, por exemplo, esse caso do Felipe Melo, contratado por três anos, numa idade avançada e sem qualquer valor de revenda já que esses contratos durante sua vigência devem ser devidamente “provisionados” em Balanço para os investidores.

Essa modelagem da criação de uma SAF não é algo que possa se clamar para a execução imediata e nem achar que com elas virão por Sheiks Árabes, Mecenas ou investidores para solucionar os passivos de má gestão de décadas, porém o melhor caminho para a criação do chamado Clube Empresa e para a criação da SAF seria imediatamente modernizar a gestão aplicando melhores práticas de governança com total transparência, pois isso sim favoreceria numa negociação com futuro investidor diante de uma eventual criação dessa nova empresa. Aliás, a criação da SAF não obrigatoriamente terá que ser majoritária de um investidor privado. A SAF poderá receber investidores minoritários e a sua criação pode ser feita imediatamente, porém em modelos que garantem as melhores práticas de governança e atendendo a legislação que é favorecida, até por questões tributárias estabelecidas na nova lei do clube empresa, como no artigo 32 que limita a 5% das receitas mensais da SAF.

Alguns clubes que colapsaram, como o próprio Cruzeiro, Botafogo e, possivelmente, até o Vasco e Fluminense, tenderão a caminhar para o sistema de clube empresa, porém a única forma de ser feita de maneira consistente sem ser atropelado como o Cruzeiro, é implantar desde já as melhores práticas de gestão de maneira antecipada, pois, caso contrário, não obrigatoriamente a SAF terá coincidência com os melhores resultados esportivos e sim com a melhor remuneração dos seus investidores.

Nesta linha, certamente a SAF irá herdar os Centros de Formações dos jogadores e os “Direitos” do Clube em participar em competições (artigo 2º, parágrafo 1º, inciso II) e sua torcida que é o que realmente vale e é tangível. Importante, porém, deixar claro, que não há qualquer obrigação prévia do novo Clube (SAF) assumir ativos como Centros de Treinamentos, Estádios como o de Laranjeiras que possuem muitos projetos de revitalização herdando o seu custeio como, aliás, deixa claro o artigo 2º, parágrafo 2º, inciso V.

Com a SAF realmente sai o amadorismo e são reduzidas as picaretagens e os jabaculês, assim como melhoram os sistemas de governança (pífios em Clubes como o Fluminense), porém também se reduz a paixão e o comprometimento dos futuros acionistas com a história do Clube, já que esse tipo de operação é um investimento onde não existe mecenato, a busca de resultado esportivo e a grande paixão é somente pelo lucro e dividendos. Sempre lembrando que serão acionistas que conduzirão a nova empresa e que sequer sem sua maioria serão torcedores do Fluminense. Ou seja, “não será mais Amor e sim Business!”. Até porque essas modelagens não são feitas por Anjos e sim por escritórios jurídicos especializados em direito societário e sob inspiração de banqueiros que fazem a devida intermediação, e até por Fundos, participarão da gestão.

O mais interessante que observo nessa discussão nas redes sociais é terem transformado o Ronaldo Fenômeno, com uma simplória formação e experiência executiva, somente com uma mera passagem como proprietário de um Clube inexpressivo na Espanha, Valladolid, um tipo de Olaria local, em um novo mago empresarial tipo Carlos Ghosn e sendo ungindo por poderes paranormais para gerir organizações empresariais, especialmente com elevados números de passivos.

Já participei em minha vida de diversas operações de criação de novas empresas, de muitas Diretorias, Conselhos, e até sou “Conselheiro Certificado” pelo Instituto Brasileiro da Governança Corporativa (IBGC) que é a grande referência institucional neste setor e estou abismado com a quantidade de “Corneteiros” quanto ao tema, e que nunca organizaram sequer uma carrocinha de cachorro quente, achando que essa operação é uma forma de burlar passivos e receber dinheiro bom de fora sem avaliar também tudo que cerca essa operação, e aliás como ficará também o chamado clube antigo que herda os passivos.

Sugiro para quem queira conhecer esses meandros, inclusive os empresariais, a excelente série na Netflix que foi produzida no México, chamado “Club de Cuervos”, onde no meio das trapalhadas de Campeonato Mexicano, artimanhas e formações societárias, como um clube de origem empresarial se engendra no meio das loucuras que se colocam nesse mercado, que é muito complicado e cheio de vícios históricos.

O sistema de Clube Empresa é uma bela, vibrante e técnica discussão, que deve ser feita de forma bastante objetiva e com conhecimento de como se faz uma formação societária entre empresas e não com o amadorismo analítico que vem reinando nas redes sociais. Portanto, temos que aguardar e discutir quem sabe até ter acesso aos acordos firmados pelo Cruzeiro com a SAF, porém buscando compreender de maneira muito sóbria os prós e os contras e como se preparar para caminhar para esse modelo ou não.

4 Comments

  1. Parabéns ao autor, que texto bem escrito. Que clareza e lucidez! ST!

  2. Quem corneta a SAF não sabe o que tá falando ou é mal intencionado. Excelente análise!

  3. Texto maravilhoso, cirúrgico , perfeito ! SAF é o caminho mas precisa ser feito tudo com calma e bastante critério

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