Na calada da noite (por Paulo-Roberto Andel)

Uma da madrugada, o Vieira fechado, eu e Leo famintos, fomos para o bar concorrente numa saudável traição justificada pelo combate à miséria alimentar. Havíamos acabado de voltar do Engenhão, após o empate do Fluminense com o chileno Huachipato pela Libertadores. Guaraná, filé de frango, arroz de brócolis, feijão, uma negra lindíssima desfilando na calçada bem à frente de seu escorte, a felicidade de ter um prato cheio num mundo onde tanta gente sofre pelo simples direito de comer. Maurício Lima estava em melhor situação do que nós: tinha para si um bife no Lamas. Conversamos e pensamos: mas que diabos hão de justificar que o Fluminense não tenha vencido este jogo em casa? Difícil dizer.

Mesmo com a distância continental do setor sul do Engenhão em relação à trave norte, pudemos ver um verdadeiro bombardeio sem efeito na direção do goleiro Veloso. Este, aliás, fez cinquenta defesas difíceis e só cometeu um pecado, justamente o que originou o nosso gol: furou incrivelmente uma bola com os pés, tentou aplicar um lençol em Deco com o joelho, tentou novamente chutar a bola, caiu sentado, acertou uma bolada num companheiro e tudo resultou em pênalti sobre o Luso: Fred cobrou com enorme categoria, deslocou Veloso entre o centro e a esquerda do gol para trazer paz ao time. Antes e depois do um a zero tentamos, cinco, dez, quinze vezes. Ainda que Deco e Fred estivessem em noite abaixo do tradicional, foi suficiente para dominarmos completamente a partida. Poderia ter sido quatro ou cinco, ficou em um com o tradicional sofrimento tricolor, entrecortado pelo canto dos maníacos de leste a oeste. Pensando bem, estes primeiros 45 minutos não foram tão diferentes dos desempenhos equivalentes contra o Grêmio e o Vasco – do time gaúcho, tomamos o primeiro gol na única jogada que nos ameaçou naquela etapa. E ai é que mora o perigo: o que se não constrói no primeiro tempo pode sair caro no segundo. Ou “quem não faz, leva”. Fomos bem coletivamente na fase inicial, sem nenhum craque em jornada absoluta, mas o grupo funcionando.

De volta a campo, o Fluminense lentamente começou a minguar seu ímpeto, diminuiu consideravelmente o ritmo da marcha e todos pensamos nas arquibancadas que seria mais uma das mil e uma noites onde sofreríamos, sofreríamos e sofreríamos até o último grão da ampulheta, para depois sairmos com um continental 1 x 0 que tanto nos marca e que tantas vezes aconteceu. O caminhão de oportunidades desperdiçadas na primeira etapa teve a conta cobrada no pedágio. Uma falta perigosa na frente da área, bate-rebate, Edinho cruelmente driblado na esquerda, novo rebote e finalmente o empate chileno, a vinte minutos do fim e derrubando de vez a nossa força em casa. Aí foi o Huachipato que poderia ter virado o jogo, mas não que deixássemos de agravar a situação: voltamos a perder gols, tanto por erros de finalização quanto pela maldita condição técnica de Veloso. A jornada em campo desgovernou-se a tal ponto que é compreensível que os nossos maníacos, decepcionados, tenham vaiado como nunca. Antes, Fred podia ter sido decisivo no fim mas Veloso foi um milagreiro debaixo das traves. Perdemos outros gols também, talvez preciosismo, talvez imperícia, talvez falta de confiança.

Queria entender o que aconteceu e tem acontecido. O time que alterna momentos espetaculares com outros de total pasmaceira. O campeão continua em campo, mas precisa fazer jus ao título. Não penso na razoabilidade de uma caça às bruxas: raras vezes, o radicalismo esquizofrênico e súbito oferece grandes reações no futebol. Entretanto, o Fluminense precisa recobrar a regularidade do bom futebol. Como já aconteceu muitas vezes, ficaremos dez dias na condição de sub-coadjuvantes, longe dos campos, perto das fofocas e maledicências. Quem sabe este recesso forçado não tenha em si o começo da reabilitação tricolor? Se dependesse de mim, nenhum movimento estrambótico seria anunciado; contudo, não passo de um humilde torcedor com seu jantar na madrugada, lamentando sem muita ênfase: “O Fluminense podia ter sido melhor. Podia.”

Haja o que houver, é claro que podemos reagir. A história já nos ensinou isso – e é uma pena que alguns insistam em repetir sucessivamente o ano escolar do futebol. Sem compromisso com a miopia midiática e a escassez intelectual dos que tanto lhe condenam, o Fluminense segue em frente. Há muito a fazer e nada disso passa por lamúrias ou arroubos intempestivos. Desta madrugada, que fiquem somente a lição de campo e a esperança inabalável que cerca o livro dos dias de Laranjeiras. Estamos longe de qualquer fim.

Paulo-Roberto Andel

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

2 Comments

  1. Parabéns Andel pela serenidade do comentário. Confesso que não estou tão sereno e otimista quanto você, mas sua crônica me ajudou a acalmar o espírito e renovar minhas esperanças. Sofro não pelos insucessos apenas, mas porque temos potencial para dar um banho em nossos adversários, mas me parece que o time inteiro, a exceção do Cavalieri, do Jean e do Nem, que são focados e humildes, acho que os demais se convenceram que são melhores do que são na verdade e estão entregando os jogos com a sua passividade e descompromisso. Sem dedicação, determinação e força de vontade esse time não vai dar os resultados que a sua fama sugere.
    De qualquer modo, sua crônica me ajudou a entender melhor que o futebol é apenas um divertimento, que não temos, como torcedores, responsabilidades pelos maus resultados nem que um mero jogo de futebol seja mais importante do que ser feliz. Abraço

  2. o tal veloso é excelente.
    cavalieri defendeu o ponto de vocês no último minuto. defesa brilhante.

    quiñones foi campeão brasileiro no Vasco e era idolatrado, apesar de
    tecnicamente terrível.
    acho que há umas duas peças ali que deveriam esquentar um banquinho,
    pois não vêm jogando lhufas. Gum e edinho.
    grande abraço.

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