Havia, no colégio estadual de Sumé, uma quadra esportiva com cimento tão grosso que parecia uma calçada mal acabada.
Havia, também, um campinho de terra, de dimensões maiores que a quadra e um poder imenso de nos sujar a todos.
A quadra cimentada era um luxo e o privilégio de jogar lá cabia, na maioria das vezes, aos meninos. A preferência era dos homens e as mulheres só jogavam “no luxuoso cimento” nos dias de torneio.
Às meninas restava o campinho de terra. Era uma terra tão fina, mas tão fina que mesmo calçando meias, o mocotó chegava em casa com uma listra marrom.
Os jogos aconteciam nos intervalos das aulas e naquele calor inclemente do sertão paraibano, voltávamos para a sala de aula suadas, empoeiradas, sedentas e felizes.
Eu devia ter uns 13 anos de idade quando me aconteceu um fato.
Minha mãe havia feito um uniforme novo. Era uma blusa branca, uma calça azul marinho, meias e tênis (provavelmente kichute).
Aliás, o kichute era ou não era um convite ao chute?
No dia da inauguração do novo uniforme, saí de casa com a seguinte determinação:
– Se você for jogar futebol e sujar esse uniforme novo, você vai ver!
Eita medo da gota! Mãe quando diz isso, já viu, né? Não acaba bem.
Na hora do intervalo, como de costume, lá fui eu para o racha no campinho. Numa jogada no bico da grande área imaginária, tentei driblar a zagueira adversária e pumba! Ela deixou a perna e eu caí. Cair num campinho de terra significa várias coisas: ralar o cotovelo, estourar os peitos no chão, arrebentar o joelho.
Foi isso o que me aconteceu. Caí já ralando o joelho no chão e, por conseguinte, rasgando, em forma de L, a calça nova, a calça nova do uniforme novo.
Quando levantei do chão foi a primeira coisa que vi: a calça rasgada. Que tragédia! Que desastre! Rasguei o uniforme novo, no primeiro dia de uso.
Findo o intervalo voltei para a sala de aula. Suada, cansada, realizada e…. rasgada. Como chegaria em casa naquele dia? Mainha, com seus olhos de lince e de mãe, fatalmente veria no primeiro olhar.
Não lembro sobre qual assunto foi aquela aula. Só pensava no rasgão, em L, bem na altura do joelho.
Terminada a aula, hora de ir para casa.
Ela ficava a 100 metros do colégio. Mas o percurso, naquele dia, pareceu de dois quilômetros. Não fui sozinha.
Minhas amigas me acompanharam, tamanho era o medo de chegar na residência.
Não entrei pela porta convencional, a da sala, mas pela porta da cozinha. Ou seja, percorri todo o beco lateral e fui por trás. Minha mãe não me viu. Ufa!
Dormi bem naquela noite e a vida voltou ao normal. Esqueci do evento.
Qual foi o tamanho do meu esquecimento que, ao me arrumar para ir à escola no dia seguinte, ao vestir a calça nova, lá estava a tragédia: o rasgo no meio do joelho. Mas o que fazer àquelas alturas? Ir para a aula assim, com a calça rasgada.
Ao sair para a escola, sorrateiramente, eis que surge a rainha, a dona de tudo e diz:
– O que houve com essa calça? Você voltou a jogar bola?
Eu confirmei a tragédia, me aproveitei do fato do horário da aula estar próximo e fui embora pensando:
– E desde quando eu deixei de jogar bola?
Essa história, já contada em partes também no Cantinho do Laranjal, tem alguns objetivos: falar do prazer e do desejo de jogar futebol; falar dos privilégios que os homens sempre tiveram em relação às mulheres e falar de uma demanda reprimida, mulheres no futebol.
Assisti a todos os jogos que pude nesse Mundial Feminino de 2023. Gostei de absolutamente todos.
Vi um futebol que evolui a cada ano, que ocupa todos os espaços do campo, que demonstra consciência tática, qualidade técnica, força física e muita adrenalina.
Não tem corpo mole, não há monotonia, não se vê acinte na relação das jogadoras com as árbitras e o jogo não estagna, tamanha a vontade de jogar bola.
É como se estivessem em campo muitas reparações históricas. É algo como: não podemos parar porque há muita vontade reprimida de chutar uma bola.
E que chute!
É como se aquela calça rasgada em L e o mocotó sujo de poeira desse espaço ao mais profissional e qualificado futebol.
Não demora e o futebol feminino disputará espaço com o masculino, já levando a vantagem de ser jogado com toda a força de um desejo subjugado.
Avante, futebol feminino!