Onze da noite de domingo. Para muitos, um horário melancólico. Lá vem a segunda, o stress, a luta e tudo que ocupa a vida da maioria das pessoas.
Há 24 horas, acabou o Fla x Flu. Muito já se falou dele por aqui. Crítica e esperança meio que se misturam. Tem a Libertadores, tem a grande final do Carioca no domingo. Até lá, cada dia será um mês. E não será nada fácil para o Fluminense, embora esteja longe do impossível.
No entanto, algo gravíssimo aconteceu. À saída do estádio, houve um fuzilamento na rua Isidro de Figueiredo, em frente ao setor Sul do Maracanã, caminho de muita gente na volta para casa depois de uma partida. Marcelo de Lima, inspetor penitenciário, por motivo naturalmente fútil fuzilou Thiago Leonel Fernandes da Motta e Bruno Tonini Moura. Thiago morreu na hora, Bruno está no hospital sob gravidade. Há vários relatos de pessoas que asseguram não ter acontecido nada que justificasse ou sequer explicasse o massacre.
Não será absurdo se essa maldita história tiver ainda outros componentes cruéis. Thiago era um homem do audiovisual, cinema e TV, sambista e fundador de um grupo musical radicado no Bar do Omar, um reduto político progressista da cidade do Rio. Já o assassino, em breve espiada nas redes sociais, oferece orgulho armamentista e alinhamento com a turma que ria das mortes por Covid-19. A conferir. Uma coisa é certa: o fuzilamento estúpido e covarde foi totalmente desproporcional a qualquer coisa que ali tenha ocorrido, agravado pelo notório pacifismo da vítima indefesa.
Além de tudo, o assassinato covarde põe por terra a medida populista e mofada de se proibir a presença de torcidas organizadas nos estádios, com o intuito de garantir a segurança. Em poucas semanas, a medida governamental se mostrou completamente inútil e, sinceramente, acreditar que isso funcionaria só tem sentido para quem desconhece completamente o universo da torcida carioca.
O jogo, Fla x Flu. As vítimas, tricolores. O assassino, torcedor vascaíno. Nem havia Vasco no estádio. Tem algo muito errado nessa história que, conforme a investigação, talvez possamos descobrir.
No exato lugar onde Thiago foi fuzilado, há tempos é colocada uma grade na rua – ah, o Maracanã e sua obsessão por grades! não o Maracanã, a obsessão é dos homens – para controlar o acesso de pedestres. Não se passa com garrafas, latas, faixas de torcida e outros adereços, tudo em nome da segurança, mas foi muito fácil que um bandido passasse com uma arma de fogo cheia de balas, usada a serviço da morte. Afinal, o que fazia o cidadão armado ali? Era segurança da localidade? Estava ali por motivo de vingança? É um psicopata? Bom, vascaíno apaixonado pelo Fla x Flu é que não é.
A violência do Maracanã vem de muitos e muitos anos. A verdade é que o Estado jamais agiu de forma eficaz para debelar o problema. Assim como a violência foi aumentando na cidade, ela também se intensificou no palco maior do futebol.
Não se trata de paternalismo ou cara de paisagem para colegas de arquibancada. Não há dúvidas que os problemas infiltrados nas torcidas organizadas existem, mas resolver a questão com sua proibição equivale a amputar um braço por causa de bursite. Tão estúpida quanto a tese da torcida única, a proibição das TOs não deu certo em São Paulo, não deu certo em Minas Gerais e não dará certo no Rio de Janeiro. É uma argumentação natimorta pelo próprio fracasso na origem.
A vida humana é o bem mais precioso de todos na Terra. O futebol é para alegrar, sonhar, divertir, pensar. Qualquer violência em estádios de futebol é primitiva ao extremo. Mas onde estão os apologistas da paz nos estádios que, ao mesmo tempo, queriam o sangue das organizadas cariocas? Em silêncio constrangedor.
O grande problema é que, no futebol carioca, a violência não é combatida com severidade, mas sim com casuísmo barato. Para muita gente, e não adianta disfarçar, as torcidas organizadas não são incômodas pela violência – até porque 99% de seus membros são pessoas pacíficas, trabalhadores, estudantes, país e mães de família -, mas sim pela integração que promovem do ponto de vista da sociabilidade, bem como da convivência de classes econômicas diferentes num mesmo espaço de lazer. Ou ainda pelos interesses da política dos clubes de futebol. Há muitos fatores, mas certamente o combate real à violência é o que menos importa. Se importasse de verdade, a investigação policial – que desmonta esquemas muito mais sofisticados e perversos – já teria vencido a parada.
Qualquer pesquisador atento poderá comprovar um fato: em fins dos anos 1970, várias mortes aconteceram na falecida geral do Maracanã – isso mesmo, dentro do Maraca. Todas tinham as mesmas características narradas: numa suposta tentativa de assalto a mão armada, policiais reagiam e matavam o bandido. Eram inclusive noticiadas nas grandes rádios. O que chama atenção é que a geral era o setor mais popular do antigo estádio, com ingressos quase de graça, voltados para as classes economicamente populares, com gente humilde que mal tinha dinheiro para comprar um copo d’água. Afinal, a quem os bandidos armados queriam assaltar? Por outro lado, o Brasil vivia a época da anistia (…) e muitos militantes progressistas costumavam ir à geral por dois motivos: a sensação de estar ao lado do povo e a dificuldade em serem reconhecidos por forças da ditadura. Há quem jure que os “bandidos” mortos não tinham arma alguma nem assaltaram ninguém. Ah, sim: não havia torcidas organizadas na geral…
Há muito tempo, quando o assunto é a violência no futebol, a hipocrisia sorri para a morte. Resta saber até quando muitos de nós faremos cara de paisagem para a questão, acreditando que somos imortais e que esse problema não nos atinge.
Está todo mundo no mesmo barco, exceto para os arrogantes que acreditam estar acima de qualquer risco.
PS: há uma grande campanha de doação de sangue para Bruno Tonini na internet. Toda ajuda é bem-vinda. Que ele se recupere dessa logo.
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Aos financiadores do livro “Fluminense Cotidiano”, minhas desculpas. Tivemos um pequeno atraso na edição e estamos trabalhando muito para resolver tudo logo. Já, já, o livro vai para a gráfica.
Qualquer dúvida, é só entrar em contato com o WhatsApp 21 99634-8756.
Muito obrigado pela atenção e consideração.
Sempre admirei você sobre o que escreve do nosso fluminense, comprei seu livro e tudo. Agora colocar culpa de um assassinato na conta de um governo passado não é justo.
Andel: Caro, certamente a coluna foi muito além da questão que você aponta. Portanto, o culpado é o assassino, réu confesso. A injustiça é dele, não minha
No entanto, o ex-presidente corrupto, miliciano e genocida exerce influência sobre psicopatas como o homicida em questão, devidamente registrado em suas redes sociais. É fato notório.
Apenas a título de observação, não vivo da venda de meus livros sobre o Fluminense. Por sinal, nove deles têm download gratuito aqui mesmo no PANORAMA. Obrigado por prestigiar a minha obra, que também é publicada gratuitamente aqui há onze anos.
Abraço. ST.