Um pacto tricolor para a eternidade (por Paulo-Roberto Andel)

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO MUSEU DA PELADA EM 21/08/2022

A primeira lembrança que tenho sobre futebol está em vias de completar meio século. No entanto, lembro dela como se tivesse dez ou quinze anos de distância. De uma vez só, me encontrei com o esporte, o ídolo e o meu time.

Em algum lugar do primeiro semestre de 1973 – e depois vocês vão entender a precisão -, era noite em Copacabana, no alto da rua Santa Clara. Nós morávamos num prédio de quatro andares, sem elevador, que já não existe mais – foi derrubado para a construção de um apart-hotel.

Nosso apartamento era grande e confortável. Para mim, era gigante. Eu sempre me lembro de ficar no quarto. No do meus pais, também tinha uma cama pequena para mim, onde dormia às vezes, geralmente de tarde. E tinha a saleta, onde eu brincava de Polly e outras coisas.

Naquela noite, eu estava no quarto dos meus pais, na minha segunda cama, enquanto eles estavam na sala, acho que com visitas. Num súbito, meu pai abriu a porta e vem falar comigo. Todo orgulhoso, ele trazia consigo outra descoberta para mim: um álbum de figurinhas. Ele os adorava, e é uma lástima para mim que todos tenham se perdido com nossas mudanças. Os álbuns eram uma declaração de amor do meu pai pelo futebol.

“Paulo, olha aqui. Esse é o Félix, ele é do Fluminense. É o goleiro do Fluminense e do Brasila”.

Parei e olhei com atenção. Eram duas palavras completamente novas para mim, Félix e Fluminense. Eu as decorei de imediato, então posso dizer que naquele momento, cercado pela felicidade de meu pai ao me mostrar o álbum, num só instante eu me tornei Fluminense – se é que já não era -, fã do Félix e, inevitavelmente, do futebol. Foi tudo um furacão de sentimentos, vejam vocês: eu era Fluminense, já era torcedor mas nem sabia as cores do time ou como era seu escudo. Numa cena de quinze segundos, eu tinha um time, um ídolo, mais um esporte para seguir pelo resto da vida. Não me apaixonei primeiro pelas cores, pela torcida, pelas bandeiras ou pelos jogadores: meu amor pelo Tricolor nasceu da palavra escrita, falada, num supetão. Ploft: Fluminense!

Félix veio junto. Eu começava a decorar as letras e palavras, e aquele nome foi tão marcante para mim que Félix e Fluminense significavam a mesma coisa, uma coisa só. Faz sentido: Félix é um dos maiores ídolos da história do clube. Cheguei a vê-lo, ainda muito criança e ele como a muralha da Máquina 1975, quando já era um personagem mítico e multicampeão das Laranjeiras.

De onde veio minha certeza sobre o primeiro semestre de 1973? Porque meu aniversário de cinco anos era em julho e, nele, eu já tinha uma bolinha com o escudo do Fluminense, já sabia que era tricolor e que meu time também tinha um lindo uniforme branco. No ano seguinte, 1974, tenho a minha primeira lembrança do Maracanã, olhando o antigo placar em 0 a 0. Enquanto o grande Gerson dava seus últimos passos na carreira e o Fluminense recebia Francisco Horta como presidente – o mais emblemático da história tricolor – e maquinista de um dos maiores times do mundo, eu já era Fluminense de alma, palavra, escudo e sentimento.

Desde então, se passaram muitos anos e aquelas palavras ficaram comigo para sempre. Há quase cinquenta anos, é muito difícil eu passar dias sem lembrar do nome de Félix – e imediatamente do meu pai. O do Flu passou de paixão: virou ofício, trabalho e parte da minha carreira como escritor. Chega a ser incrível pensar que tudo parecia escrito lá atrás, quando passei a amar o clube pelo som e grafia de seu nome.

Félix é um dos grandes heróis tricolores da história, um vencedor supremo, uma fera, um paradigma, um campeão do mundo. Para mim, ele ainda consegue ser mais do que isso: olhando esse longo tempo para trás, ele é a primeira lembrança de uma longa estrada que veio até aqui, sem previsão de término. Félix é Fluminense, as duas palavras são a felicidade de Helio Andel abrindo a porta e, todo orgulhoso, mostrando seu ídolo num álbum de figurinhas para o pequeno filho. É a eles que tenho perseguido por todos os anos. O Fluminense é, a cada três dias, meu sonho de reencontro com aquela noite da infância.

Aquele apartamento não existe mais, nem meu pai, nem Félix, mas a força das palavras atravessou os tempos de tal forma que eles parecem eternos. Agora está escuro aqui no quarto e a TV mostra um noticiário na madrugada, mas me basta uma breve espiada no teto escuro e ele me sugere aquele outro quarto, onde em segundos pai, filho, goleiro e time fizeram involuntariamente – mas nem tanto – um pacto para a eternidade.