Em 1976 eu tinha oito anos de idade e já tinha ajudado meu pai no que seria a sua última loja, que ficava no centro de São João de Meriti e tinha o curioso nome de Heduwi, composto por sílabas dos nomes dos sócios. Era um momento muito difícil para ele e, consequentemente, para a família.
Lembro de ter ficado encantado ao ver uma máquina de refrigerante numa lanchonete certa vez, perto da Rua da Matriz. O balconista apertava um botão e enchia o copo. Era uma máquina de Pepsi – muitos anos mais tarde eu conheceria uma garota fantástica que tinha o apelido de Pepsi. C’est la vie.
Noutra ocasião, eu e meu pai fomos à casa de um amigo dele que morava perto da loja, chamado Dalmo. A casa era bem grande e bonita, mas a rua era cheia de barro – claro, não havia asfalto, depois é que fui entender. Na cozinha, o Dalmo pegou um queijo grandão e começou a fatiá-lo com um cortador manual. Vejo as fatias finíssimas e deliciosas como se fosse há pouco tempo.
Apesar do momento difícil, sempre tinha algum presente tricolor para mim: uma bolinha, um time de botão, um escudinho. Eu passava na banca de jornal perto da loja e sempre via escudos tricolores de todos os tamanhos, achava fantástico. Era a vida de uma criança apaixonada por seu time.
Quando ficávamos na loja à tarde, pelo menos umas duas vezes por semana recebíamos a visita do Seu Santana, também amigo do meu pai, um senhor de uns sessenta e poucos anos, acho – meu pai era jovem ainda, uns trinta e cinco. Gentil e calmo, o Seu Santana sempre trazia pão de queijo para nós – foi a primeira vez que comi -, além de trazer boas palavras para meu pai, nervoso com a falência que se aproximava.
Eu espiava os jornais pendurados na banca. As manchetes falavam de Rivellino, de Carlos Alberto Torres, da Máquina que eu já tinha visto no Maracanã. Naquele ano o Fluminense era o time mais famoso do mundo, admirado por todos e com uma verdadeira Seleção Brasileira em campo. Veio então a decisão de vaga com o Corinthians e, descontadas todas as hipérboles a respeito da partida, o fato é que a chuva tirou a classificação tricolor, consagrando o Timão nos pênaltis – até os alvinegros mais apaixonados reconhecem que o Flu tinha um time muito melhor. Mas, enfim, deu Corinthians. Na loja apareceu um fornecedor que todos chamavam de Paulista. Feliz da vida, ele mostrava seu chaveiro com o escudo corintiano. Meu pai gostava dele.
A loja fechou de vez na véspera de Natal. Foi uma noite horrível porque meu pai, desesperado, chegou a quebrar um balcão de vidro. Voltamos eu e minha mãe para casa. Passamos em silêncio, no escuro, como se nada tivesse acontecido. Nervosa, ela chorava. Vi minha mãe chorar poucas vezes na vida, essa foi uma delas. Meu pai só veio no dia seguinte, certamente arrependido e também triste. Falir e ser despejado não é fácil para ninguém, é uma sensação de morte. Eu fiquei mexendo nos meus botões do Fluminense até dormir, nervoso sem meu pai em casa, nervoso pela minha mãe, nervoso por tudo.
O tempo passou e exatamente um ano depois, passamos uma boa noite de Natal em Copacabana, num novo apartamento. Meu pai estava empregado.
O Paulista nunca mais vi, nem o Dalmo. Nunca mais voltei a São João de Meriti. Nunca mais comi fatias de queijo tão bem cortadas, finíssimas. Pouco tempo depois do fim da loja, soubemos que o Seu Santana havia morrido – ele era tão bom pra nós, se preocupava conosco. Quando como pão de queijo, invariavelmente lembro dele.
As bancas de jornais quase não têm jornais e revistas, mas procurando direitinho no Centro ou em Copacabana você acha belos escudinhos.
O tempo passou. Rivellino ainda está bem por aí. Boa parte da Máquina, que tantos bons sonhos ofereceu. Do resto eu fiquei como único sobrevivente. O tempo não perdoa.
Meus botões do Fluminense estão em algum lugar da casa. É um consolo, um alívio.