O Fluminense não é apenas o time do meu coração, que acompanho freneticamente há quase quarenta anos. Por causa dele, já tive a oportunidade de entrevistar pessoas admiráveis da vida brasileira, como Maria Bethânia, Ivan Lins, Ítalo Rossi, Sergio Britto, Paulo César Saraceni, Gilberto Gil, muitos mais, no que sou extremamente grato.
Em certo dia de 2006, ao lado de meus companheiros de trabalho Raul e Rita Sussekind, mais Alvaro Doria, experimentei um dos pontos culminantes de minha improvável vida de repórter: foi a vez de entrevistar Oscar Niemeyer.
Chegamos cedo ao prédio da avenida Atlântica, bonito e antigo, até pequeno se comparado com os gigantes de concreto de Copacabana. Subimos, fomos bem-recebidos, esperamos um pouco e tivemos a grata emoção de chegar à janela 180 graus projetada pelo arquiteto maior, que dava aos visitantes e moradores a chance de ver a Princesinha do Mar de uma ponta a outra.
Algumas coisas amarraram minha atenção: o apartamento era bonito, todo branco, claro, mas quase desprovido de mobília. Feito de espaços, tal como as obras do mestre. Nenhum móvel luxuoso, nenhuma ostentação se comparado com os apartamentos de edifícios vizinhos por toda a orla. Os patetas que sempre detrataram o Doutor Oscar por conta de seu comunismo declarado conviver bem com a moradia na Atlântica ficariam constrangidos. Mais ainda: o Doutor Oscar foi morar ali nos anos 30, quando Copacabana ainda era uma promessa barata e Ipanema abrigava os pobres – sim, acredite: antigamente os areais eram destinados à ralé econômica. Contudo, os detratores são mergulhados no vinagre da mais profunda ignorância.
Em certo momento, algum assistente nos chamou. Entramos no escritório. Lá estava o Doutor Oscar, camiseta e camisa brancas, a implacável bandeira do MST numa cadeira, conversamos por cerca de vinte ou trinta minutos. Não foi muito fácil: nosso trabalho exigia algumas perguntas do tipo que se faz a um consumidor e, logo, o comunista admirável ficou impaciente. Mas nos atendeu bem, com fidalguia e relembrou o tempo em que vestiu a sagrada camisa do Fluminense por duas ou três partidas em campo. Os grandes bailes das Laranjeiras, onde sua família Ribeiro de Almeida fincou morada. A vida no começo do século XX. Claro, não deixamos de falar de injustiças sociais, um dos temas preferidos do mestre. Mesmo que tenha detestado as perguntas de consumo, foi de uma elegância ao seu estilo. E ali me senti mais repórter e cronista do que nunca – o rei dos cronistas na verdade, para desespero de quem, em sua rudimentar existência, se auto-proclama bendito e imaculado. Mas aqui não há espaço a ser desperdiçado com pessoas e ideias menores. E nem para deslumbramentos, felizmente sou imune a eles.
Entrevistar Oscar Niemeyer é para poucos, de modo que, ao lado de Rita, Raul e Alvaro, eu me considero um sujeito de muita sorte. Uma pena que Caldeira não estivesse também, mas a vida é senhora de seus desígnios.
II
De longe, sem saber de minha existência, o Doutor Oscar foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. Ao lado de homens como Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes e Darcy Ribeiro, ele foi essencial no começo de minha busca pela pesquisa, o gosto por tentar entender a história sombria dos tempos em que nasci e mesmo antes, bem antes. Compreender a busca na terra por uma sociedade mais justa, sincera, com amparo a todos e longe do canibalismo que a obsessão pelo capital tratou de imprimir. Por conta de ser filho e sobrinho de pessoas que foram presas e torturadas pela abominável ditadura civil-militar 64, vivi em uma casa comunista e, com poucos anos de idade, acabei me debruçando em literaturas e autores que só poderia compreender de verdade uns dez anos depois, talvez vinte. Reitero: o Doutor Oscar foi essencial na minha formação, de modo que, se hoje tenho alguns leitores e simpatizantes, tudo isso veio de alguma forma da gênese que ele também semeou.
Não me lembro de uma entrevista do Doutor Oscar em que não dissesse que era preciso combater as injustiças da vida, as desigualdades. Os que estiveram a seu lado sabem muito bem quantas e quantas pessoas ele ajudou pessoal e financeiramente falando, muitos com instrução para que dessem seus voos pessoais. Viveu mais de cem anos e sempre defendeu as mesmas causas – não se pode questioná-lo por coerência. E quanto ao seu ideário político, basta dizer que todos os grandes veículos de comunicação do Brasil, profundamente antipáticos ao comunismo, sempre se calaram quando as palavras vinham do arquiteto-maior. Parecia algo como “Não, com ele não podemos, é melhor ficarmos calados.”. Melhor mesmo. Uma espécie de reserva moral do país, a antítese da pilantragem que se faz com os dinheiros público e privado em prol da impotência política das classes populares, claramente articulada por redações, estúdios, grandes corporações, famílias aristocráticas e respeitáveis. Uma reserva intelectual e antítese de todo o rasteiro pensamento reinante dos “formadores de opinião”: os mainardis, os reinadoazevedos, os jabores e outras categorias ainda mais opacas, todas ávidas pelo falar difícil que sugira o sofisticado, quando na verdade só quer dizer do vazio.
Por isso, a ele, Doutor Oscar, agradeço por tudo.
III
Até aqui, não falei da monumental obra arquitetônica do Doutor Oscar.
E nem precisaria.
Quem sou eu para falar disso?
Alguns dos maiores arquitetos mundiais tecem-lhe loas infinitas há décadas e décadas. Basta ler as principais manchetes do mundo inteiro publicadas hoje.
Ir contra isso é vestir um chapéu de cone daqueles que interditam uma avenida.
IV
“Aproveitar a vida? É o contrário do egoísmo. É Cuba, o risco, o sonho… O egoísmo mata, apequena. Empobrece tudo. É a verdadeira pobreza. O homem nasce e morre, tudo começa e acaba. O chato mesmo é não saber como vai acabar…”
‘Minha posição diante do mundo é de invariável revolta.”
“Toda escola superior deveria oferecer aulas de filosofia e história. Assim fugiríamos da figura do especialista e ganharíamos profissionais capacitados a conversar sobre a vida.”
“A vida é um sopro.”
V
E pensar que um dos maiores homens deste planeta vestiu nossas cores em campo, dançou em nossos salões, admirou nossa camisa.
Os clássicos são eternos.
Paulo-Roberto Andel
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
Contato: Vitor Franklin
7 Comments
Comments are closed.
Fenomenal! Uma pena eu não estar mesmo nesta entrevista!
Paulinho, ótimo e belo depoimento. Me jurei que não iria falar sobre isso, mas não pude deixar de reparar que os jornais com maior exibição da Globo, incluindo Globo News não citam os CIEPS… Logo uma obra, tão mal entendida, de inclusão social, que simboliza a convicção política e humanista do mestre.
Querido Carlos Lopes… a eterna máquina contra a educação.
Muito boa crônica, parabéns. Niemeyer disse, não com essas palavras exatamente, que o homem deveria ser mais modesto diante do universo. Isso nos ajudaria a amar e compreender mais o próximo, ser mais solidário e perdoar os erros que não sejam encapsulados em más intenções. A vida é efêmera e deveríamos vivê-la com mais intensidade, apreciando as belezas da natureza e usufruindo de seus recursos com responsabilidade. O Fluminense parece ter sido um capítulo importante de sua vida juvenil. Depois aconteceram algumas trocas que,a credito, não representaram muito mais do que o agrado a amigos que tentaram convencê-lo das mudanças. Niemeyer vai embora, mas nos deixa um legado material incomum e uma lição de vida abundante. Para os que o causam de blasfêmias e tonterias, peço que pensem na lição que Cristo deu aos homens da sua época ao pedir que atirasse a primeira pedra sobre a adúltera aquele que não carregava pecados. Perdoar é sublime e amar o próximo é condição humana essencial.
Muito boa crônica, parabéns. Niemeyer disse, não com essas palavras exatamente, que o homem deveria ser mais modesto diante do universo. Isso nos ajudaria a amar e compreender melhor o próximo, ser mais solidário e perdoar os erros que não sejam encapsulados em más intenções. A vida é efêmera e deveríamos vivê-la com mais intensidade, apreciando as belezas da natureza e usufruindo de seus recursos com responsabilidade. O Fluminense parece ter sido um capítulo importante de sua vida juvenil. Depois aconteceram algumas trocas que, acredito, não representaram muito mais do que o agrado a amigos que tentaram convencê-lo das mudanças. Niemeyer vai embora, mas nos deixa um legado material incomum e uma lição de vida abundante. Para os que o acusam de blasfêmias e tonterias, peço que pensem na lição que Cristo deu aos homens da sua época ao pedir que atirasse a primeira pedra sobre a adúltera aquele que não carregasse pecados. Perdoar é sublime e amar o próximo é condição humana essencial.
Sensacional, Paulo!
GÊNIO TRICOLOR!