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Minha coluna já estava quase pronta há pouco, quando fui golpeado pela notícia da passagem de Naná Vasconcelos, um dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos.
Então tudo mudou, por uma infeliz coincidência associada às minhas lembranças sobre o Fluminense. Explicarei.
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Em 30 de maio de 2014, o Fluminense promoveu em sua sede um encontro com algumas feras do time campeão brasileiro trinta anos antes. Foi uma noite concorridíssima e de forte emoção, tendo em vista que o artilheiro Washington havia falecido cinco dias antes.
Estavam presentes Duílio, Romerito, Wilsinho “Xodó da Vovó” e Assis.
Cerca de uma hora e meia de causos, lembranças e risos, estes disfarçando a dor ali sentida pela perda do estimado camisa 9. A plateia, mesmo comovida, cantava e gritava como se estivéssemos nas velhas arquibancadas daquele Maracanã que também faleceu, vitimado pela força da grana que ergue e destrói coisas belas.
À saída, os ídolos foram louvados como sempre. O único a sair imediatamente foi Assis, cercado por uma legião de fãs como era de se esperar. Percebi que sua caminhada era lenta e, na verdade, ele se apoiava no ombro de um rapaz que creio ser seu filho. O ícone de 1983 e 1984 mantinha sua passada elegante, calma, mas daquela vez parecia dolorida. Alguém ao lado, acho que o Mauricio Lima ou um outro camarada, disse “Cara, ele está muito emocionado, o amigo acabou de falecer, deve ter sido por isso que estava sendo amparado!”.
Não foi o que pensei, mas fiquei em silêncio de contemplação. Assis era um ex-atleta, esguio, imponente. Por mais que estivesse emocionado – e é claro que estava -, eu, que o vi tantas vezes em caminhadas nas Laranjeiras e no gramado do Maracanã, achei que alguma coisa estava errada. Um homem elegante caminhado com sua dor elegante, versos de Leminski à vista:
“Um homem com uma dor/ É muito mais elegante/ Caminha assim de lado/ Como se chegando atrasado/ Chegasse mais adiante/ Carrega o peso da dor/ Como se portasse medalhas/ Uma coroa, um milhão de dólares/ Ou coisa que os valha/ Ópios, édens, analgésicos/ Não me toquem nesse dor / Ela é tudo o que me sobra/ Sofrer vai ser a minha última obra”.
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Domingo de manhã, seis de julho de 2014, prestes a sair para tomar café, o inbox me convocou às sete da manhã. Meu amigo Matheus Frigols, também deste PANORAMA, comunicou a pior das notícias: Assis estava morto.
Desisti da programação inteira e vim para cá escrever. Era minha obrigação. Pouca gente sabia do ocorrido. E você precisa contar a perda do seu grande herói, do cavaleiro imortal daqueles Fla-Flus condenados à eternidade.
Eu tinha visto a dor elegante de Assis. E chorei.
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Os que conhecem a minha trajetória de cronista sabem do meu apreço por música, tamanho a ponto de manter uma loja de discos por quatro anos sem lucro até que não foi mais possível. Moro numa casa que parece um depósito de CDs, uns três mil – já teve três vezes mais. Misturados aos livros, eles compõem a beleza e o caos de uma casa modesta.
Conheci Naná Vasconcelos desde criança, era uma presença na vitrola de meu pai. Músico refinado, dos maiores que este país já teve, percussionista cujo talento cativou vários dos maiores artistas do jazz: Miles Davis, Art Blakey, Tony Williams, Don Cherry, Pat Matheny e Oliver Nelson. Só.
Naturalmente, sou um tremendo fã. Naná, torcedor do Santa Cruz, frequentador do Mundão do Arruda.
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Treze de agosto de 2015, um show espetacular do percussionista no teatro do BNDES. Por sorte, consegui o ingresso na primeira fila.
Temas e temas fantásticos, mais do que um show, uma experiência.
Uma coisa me chamou a atenção: ao término de cada faixa, debaixo de aplausos incontáveis, Naná respirava fundo demais e tocava as costas. Parecia sentir dor. Isso aconteceu várias vezes. Eu, que já tinha visto várias apresentações do artista, achei estranho e, num súbito, a primeira coisa que me veio à cabeça foi aquela dor elegante do Assis. Segundos depois, um ateu disse “cruz credo” e a vida seguiu.
Show terminado, a plateia voando para comprar o CD novo, fantástico. Só me incomodou a capa vermelha e preta, mas de brincadeira.
No coração do centro da cidade, caminhei e pensei nos lindos versos malditos:
“Um homem com uma dor/ É muito mais elegante/ Caminha assim de lado/ Como se chegando atrasado/ Chegasse mais adiante/ Carrega o peso da dor/ Como se portasse medalhas/ Uma coroa, um milhão de dólares/ Ou coisa que os valha/ Ópios, édens, analgésicos/ Não me toquem nesse dor / Ela é tudo o que me sobra/ Sofrer vai ser a minha última obra”.
Naná e Assis, biótipos parecidos. Dois monstros nas suas áreas de atividade. Poetas da música e do futebol.
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Poucos meses depois, o músico está internado. Leio as notícias e fico sabendo que ele descobriu um câncer no pulmão logo após ter feito a apresentação no BNDES. As dores nas costas e a respiração difícil eram o aviso daquela noite.
Naná começou o tratamento, voltou a se apresentar e ainda fez sua grande exibição no Carnaval do Recife. Não voltaria ao Rio de Janeiro para mostrar sua música mágica e inconfundível
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Acabei de parar tudo e jogar a outra coluna fora. Naná Vasconcelos acabou de falecer. Seu legado musical é eterno. Penso nele e em Assis, dois distantes ídolos, dois elegantes exemplos de talento, dois homens negros que superaram a origem pobre e as dificuldades para alcançarem a consagração. Dois homens humildes, ao contrário de tudo que vemos hoje por aí afora, a começar pelos neandertais da internet.
Aquelas dores elegantes das Laranjeiras e do teatro do BNDES só existiram na minha pequena observação particular, mas é justo dizer que elas faziam todo sentido. O Assis é um escudo do Fluminense; o Naná bem poderia ter sido um. Quem dera. Tinha o coração no Santa Cruz, mas sua estirpe era, sem dúvidas, a cara das Laranjeiras.
Os craques vão passando, a história vai escorrendo e os homens dignos ficam mais tristes.
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Nosso cronista – e músico – Marcus Vinicius Caldeira teve a oportunidade de passar uma tarde com Naná Vasconcelos, quando estava hospedado na casa de Edwin de Olinda – outro monstro da percussão, tendo integrado por muitos anos a banda de Alceu Valença.
Nas palavras de Caldeira, “Ele sentado no banco da praça em Olinda é uma das grandes lembranças pessoais que tenho. Uma perda irreparável. Um dos maiores percussionistas do mundo.”
Entende-se então o luto deste PANORAMA. Naná Vasconcelos e George Martin mortos no mesmo dia são um soco na cara.
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Amanhã à noite tem o importante jogo contra o Criciúma, na estreia de Levir Culpi e, a julgar pelas palavras do treinador, as expectativas são as melhores.
Que tudo dê certo. Torçamos muito.
Rods e Crys já falaram muito bem sobre o tema nas colunas de hoje, o que ajuda a poupar meu desvio de foco nesta publicação.
É que o futebol e o Fluminense são fundamentais, mas a vida sem amor, respeito e consideração ao próximo não tem cabimento, exceto para os idiotas que jamais terão espaço aqui, sequer na lixeira.
Aqui é Naná Vasconcelos, não Milli Vanilli.
@PanoramaTri