Duas crônicas fantásticas do mestre Nelson Rodrigues em momentos diferentes do futebol brasileiro.
É chato ser brasileiro!
Dizem que o Brasil tem analfabetos de mais. E, no entanto, vejam vocês: — a vitória final, no Campeonato do Mundo, operou o milagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triunfo. A partir do momento em que o rei Gustavo, da Suécia, veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo, aqui, sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se escreve com “x” ou não iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: — analfabetos natos e hereditários devoravam vespertinos, matutinos, revistas, e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do “lance a lance” da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.
E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete, que, hoje, é o meu personagem da semana, múltiplo personagem. Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra, em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente esportivos: Ilusão! Os 5 x 2, lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos, aqui, percebem o seguinte: — é chato ser brasileiro!
Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais andam, pelas calçadas, com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: — o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas.
Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: — que éramos nós? Uns humildes. O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: — “Eu sou humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo!” Ele vivia desfraldando essa humildade e a esfregando na cara de todo mundo. E se alguém punha em dúvida a humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher, com os credores. Mal comparando, um são Francisco de Assis de camisola e alpercatas.
Mas vem a deslumbrante vitória do escrete, e o brasileiro já trata a namorada, a mulher, os credores de outra maneira; reage diante do mundo com um potente, um irresistível élan vital. E vou mais além: — diziam, de nós, que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos.
E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana. Ninguém aqui admitia que fôssemos “os maiores” do futebol. Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava o melhor nem de cuspe a distância. E o escrete vem e dá um banho de bola, um show de futebol, um baile imortal na Suécia. Como se isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a última peleja. Foi uma lavagem total.
Outra característica da jornada: — o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: — o verdadeiro inglês, o único inglês, é o brasileiro. Um Didi, lá fora, observou uma calma, uma polidez, um equilíbrio que fariam morrer de inveja o major Anthony Eden. Amigos, na Suécia quem levou pontapé, do pescoço para cima, fomos nós. E, ainda por cima, roubaram a gente, bifaram os nossos gols, a nossa camisa. Mas tudo inútil, porque o Brasil apresentou o maior escrete do universo, segundo os mais exigentes críticos do mundo. Por fim, a lição do meu personagem. Ele ensinou que o brasileiro é, sim, quer queiram quer não, “o maior”.
Manchete Esportiva, Edição da Epopeia Brasileira,
Edição Especial, 5/7/1958
Guerra suja, tão suja
Quando escrevo sobre as hienas, sobre os abutres, sobre os chacais do futebol brasileiro — todo mundo acha que estou fazendo uma metáfora. E ninguém desconfia que são as hienas, os chacais, os abutres os autores da catástrofe. Já rolou a cabeça de João Saldanha. Não se pense, porém, que a tragédia foi improvisada de um dia para outro.
Sabem quando começaram a afi ar a guilhotina? No dia mesmo em que o escolheram para técnico da seleção. Não sei se vocês se lembram. Se não se lembram, vamos lá. Uma manhã, [João] Havelange e Antônio do Passo passaram na casa de João Saldanha. Era um domingo parnasiano, com um luminosíssimo azul de soneto. Feito o convite, o João deu a resposta fulminante: — “Topo.” Só dois dias depois e, portanto, na terça-feira, explodiu a notícia.
E se juntaram todas as invejas, todas as frustrações, todos os interesses contrariados. Uns disfarçavam menos, outros, mais, o ressentimento. O espantoso é que, pela primeira vez, cometia-se esta gafe hedionda: — a escolha de um técnico para uma função técnica. Não fora um ato político, nem do Havelange, nem do Passo.
Dias depois, encontro-me com o Havelange no Cartum. Ou por outra: era contra; e assim a quase unanimidade do rádio e da TV. Mas o povo estava com o João. Por onde passava, o homem das esquinas e dos botecos fazia-lhe uma festa total. O chauffeur de praça dizia-me, de olho rútilo: — “Agora vai!” E repetia, com o lábio trêmulo: — “Agora vai!”
Mas o profissional da imprensa, do rádio não lhe dizia “bom dia” sem lhe pingar veneno. Veneno da víbora que matou Cleópatra. Assim em todo o Brasil. Há dois ou três dias, um jornal de Curitiba abriu a manchete terrorista: — “Preso João Saldanha.” Outros vinham me soprar, lúgubres: — “Na primeira derrota, o João cai do cavalo.” Como se desejou essa “primeira derrota”.
Alguém perguntará: — “Por que essa gana de tantos contra um só?” Vejamos. Primeiro, porque ele não tem medo. Nada nos humilha mais do que a coragem alheia. Segundo, porque passou a ser o homem mais promovido do Brasil. Ainda agora, vimos a força do seu nome e de sua lenda. Seu incidente, em São Conrado, coincidiu com o sequestro do cônsul japonês. Mas o caso do João abafou, esvaziou o do japonês. Os jornais falavam do João, e de uma forma tão obsessiva que parecia ele o sequestrado, ele o raptado.
Terceiro, porque havia o terror de que voltasse, do México, com o caneco de ouro, para sempre. Imaginem o João passando, na Avenida, e de maçã na boca, como um triunfal leitão assado. O que se fez com Saldanha, na classificação, foi uma das páginas mais negras do futebol brasileiro. Passaram para o Brasil jogos que só existiam na imaginação dos bons colegas. O escrete estava uma vergonha, ninguém jogava nada. Lembro-me de um locutor vociferando: — “Assim o Brasil não passa da estreia.”
Aqui, atracado ao rádio, o povo ouvia só, em cava depressão. Mas, quando veio o teipe, foi um divertido escândalo. Os nossos jogadores deslizavam na grama como cisnes. Ninguém precisava correr. A seleção andava em campo para cansar o adversário. Contra a Venezuela, airradiação foi uma antologia de horrores. Terminou o primeiro tempo empatado de 0 x 0.
O Brasil não fez gol na primeira fase porque, novamente, quis exauriro inimigo. Na etapa final, fizemos um. Um dos confrades berrou: — “Agora o João vai recuar Pelé para defender o escore.” Meu Deus do céu, a superioridade brasileira chegava a ser humorística. Na sua má-fé cínica, a maioria dos confrades atribuía ao time de Saldanha os defeitos mais horripilantes. Todavia, o videoteipe, com sua veracidade burra, serviu para desmascarar toda a fraude. Sem recuar Pelé, ganhamos de cinco.
As hienas, os chacais, os abutres voltaram frustradíssimos. Precisavam de uma derrota e não tinham a derrota. Mas continuavam passando o amolador na guilhotina. Falei no jogo com a Inglaterra? Ah, não falei do jogo com a Inglaterra. Pois bem. O escrete do João, sem um treino, com os jogadores entregues na véspera, o escrete, repito, venceu a Inglaterra? E não foi uma vitória como há muitas, como há tantas. Vencemos com um ignominioso olé. Os ingleses andaram na roda como os ursos bêbados de feira.
Portanto, só uma hiena, ou só um abutre, ou só um chacal pode afirmar que o escrete não fez nada. Em plena fase experimental, fez mais do que devia, mais do que podia. O olé em cima dos campeões do mundo foi, segundo a própria imprensa inglesa, um show maravilhoso. Mas, como não vinha a derrota inapelável, começou o massacre. Claro que nem todos os cronistas usaram o mesmo processo. Mas cada notícia sobre Saldanha era, normalmente, uma intriga vil. As manchetes faziam um descarado terrorismo contra o técnico. Isso em toda a imprensa, em todo o rádio, em toda a TV do Brasil. E era dia após dia, hora após hora, minuto após minuto.
Perdi a conta do tempo em que João foi malhado como um judas de sábado de Aleluia. E se o grande técnico dava uma bronca, o nosso grã-finismo estrebuchava: — “Não tem serenidade! Não tem equilíbrio!” Claro que podíamos dizer isso, porque cada um de nós estava fora da guerra, e abanando-se com a Revista do Rádio. Sim, é fácil ter boas maneiras, é fácil ter equilíbrio, é fácil ter serenidade quando ninguém nos xinga, quando ninguém nos insulta, quando ninguém nos massacra.
Digo “massacre” para repetir: — nunca houve, no Brasil, um massacre pessoal tão desumano. E o espantoso é que nós exigíamos do “João Sem Medo” um comportamento de estátua de Abraham Lincoln. E como os seus brios se eriçaram mais do que as cerdas bravas do javali — encontraram, finalmente, o pretexto. Faltara a derrota que as hienasesperavam. Mas o Saldanha tinha brio. Ótimo, ótimo. Por ser brioso, tinha que sair do escrete.
Houve um truque: — a demissão coletiva da comissão técnica. Mas o que se queria era a cabeça do João. E, para tanto, a guilhotina vinha sendo afiada há meses. Ah, como é curioso o destino das palavras. Imaginem vocês que, no domingo do segundo Brasil x Argentina, conversei com João Havelange. Estávamos na tribuna de honra do Estádio Mário Filho. O jogo ainda não começara. A dois passos de nós, tomando um café forte, estava o presidente da República. Havelange disse-me o que pareciam ser palavras eternas: — “O João vai até o fim. Não há hipótese de sua saída. E se, por acaso, ele pedir demissão, eu o impedirei, fisicamente, de sair.”
Já ensaiei uma explicação. Mas repito: — “Por quê, por quê?” O Salim Simão explica-me que Saldanha tornara-se poderoso demais. Ele,sozinho, com a sua figura folclórica, as suas broncas lendárias, os seus brios flamejantes — ele era maior do que a CBD, do que as federações, do que as forças ostensivas ou obscuras que manipulavam o nosso futebol. E as invejas, as vaidades, as frustrações, os rancores — não podiam admitir que ele fosse maior do que uma estrutura laboriosamente criada e mantida. E ainda seria muito maior e muito mais forte se voltasse com o caneco de ouro. Teria então meios de transformar a nossa realidade esportiva.
Mas vejam: — seu primeiro dever era a classificação; e ele o cumpriu. O segundo dever era a conquista do título. Parentes, figuras da imprensa, do rádio e da televisão se uniram para frustrá-lo no seu maravilhoso esforço final. Exigiram que ele se deixasse massacrar sem um gemido. Rolou a cabeça do “João Sem Medo”. E, agora, queremos mais do que nunca o caneco.
Ah, foi uma guerra suja de tantos contra um só. Guerra digna do nosso vômito.
O Globo, 19/3/1970
Panorama Tricolor
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