Um conto tricolor (por Felipe Fleury)

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Paixão inalienável

Pai e filha entraram no pequeno consultório médico onde havia três conjuntos de cadeiras para que os pacientes pudessem aguardar a chamada para o atendimento.

Sentaram-se nos dois únicos lugares vazios e aguardaram. Após cerca de cinco minutos, a moça da recepção anunciou: “Senhor Paulo Gomes”.
Nesse instante, o pai disse à filha: “Eu já volto, espere o papai aqui”.

Assim que Paulo sumiu atrás da porta de entrada da sala de seu médico, um homem, que estava sentado ao lado de sua filha, tratou de iniciar uma conversa com a menina.

“Qual é o seu nome?” Perguntou o sujeito.

“Júlia”, respondeu a menina um tanto acanhada e bem baixinho, interrompendo uma conversa on line em seu aparelho celular. O sujeito pensou um instante, olhou para a diminuta TV na parede e emendou: “Ah, uma mocinha tão linda com uma camisa tão feia!”.

Dessa vez Júlia deixou o acanhamento de lado e respondeu aborrecida: “Feia por quê? Não é não, é muito bonita!”.

O homem, então, sentindo que a menina mordera a isca, prosseguiu: “Essa camisa é horrorosa; bonita é esta aqui” – abriu a sua carteira e mostrou o escudo do Flamengo.

Júlia, já motivada a defender seu time das ofensas daquele desconhecido inconveniente, provocou o sujeito: “Por que o seu time seria melhor do que o meu?” “Ah, isso é fácil de responder, é porque tem mais títulos, mais torcida…” A menina o cortou: “Isso não quer dizer nada”.
“Tem sim, isso quer dizer tudo…Aposto o quanto você quiser que foi o seu pai quem fez você torcer o Fluminense”, disse o homem, esperando a confirmação de Júlia. “Claro que não”, ela respondeu; e continuou: “Ele é flamenguista”.

Por um momento ele se desconcertou, não esperava essa resposta, afinal de contas, seus três filhos torciam para o seu time por sua influência. Apesar da inesperada resposta, não se deu por vencido: “Ah, mas então você foi convencida por seus coleguinhas de escola. Pode dizer que foi isso!”, tentou induzi-la.
“Também não”, Júlia respondeu secamente.

“Duvido”, retrucou com um sorriso sarcástico.

Júlia demorou um pouco para responder, mas tentou ser definitiva: “Ninguém me convenceu de nada. Já tenho dez anos e sei muito bem o que quero. E na minha sala, quase todos os meus amigos torcem para o Flamengo!”

O homem parecia sem mais argumentos. Como poderia uma menina ter tanta personalidade para se esquivar da influência dos amigos e do próprio pai, pensou. Decidiu, então, fazer uma investida final.

“Vamos fazer um trato?”, perguntou.
Júlia, já sem paciência, fingiu não ouvir o que ele dizia e fixou os olhos em seu smartphone, procurando concentrar-se na conversa que travava com uma amiga. Percebendo que a menina tentava se esquivar, insistiu: “Júlia, você me ouviu? Vamos fazer um trato”. Considerando o seu tom de voz mais elevado, ela não teve mais como fingir que não o ouvia. Que cara chato, pensou, mas para não passar por mal educada, respondeu ao seu apelo: “Que trato?”

“Veja bem”, o homem disse, preparando o terreno para uma proposta agressiva e irrecusável para uma menina de dez anos, e emendou: “Sabe o Martin Bolton?…” – Martin era o cantor ídolo de 9 entre dez meninas da idade de Júlia, um verdadeiro pop star infanto-juvenil – “ele vai fazer um show aqui dentro de um mês, quer ir?”

Os olhos de Júlia brilharam. Largou o smartphone e, pela primeira vez, passou a se interessar pela conversa. O sujeito, radiante, imaginara ter atingido o seu objetivo, mas anter de revelar a contrapartida de Júlia, teve que ouvi-la perguntar ansiosa: “É o meu sonho, quero muito, muito, muito! O que eu preciso fazer? Não é um trato!?”

“Sim, é um trato”. Olhando o rostinho iluminado de Júlia, por um instante pensou em desistir, mas o seu desejo incontido de vê-la sucumbir à sua vontade, algo que nem seu pai, nem seus amigos conseguiram, o fez prosseguir: “É o seguinte, eu te dou dois ingressos, um para você e outro para quem você quiser presentear. Em troca…” “O quê?”, interrompeu Júlia ansiosíssima. “Em troca você me promete que vai mudar de time”.

Ela não precisou responder. O brilho nos olhos da menina desapareceu, lentamente esparramou-se pela cadeira e tornou a atenção novamente ao seu dispositivo móvel e à conversa interrompida com sua amiga. Era a pura imagem da decepção.

O homem, percebendo o mal que havia feito, tentou corrigi-lo, não sem dar a sua última cartada: “Tudo bem, estou vendo que você é dura na queda. Eu vou te dar uma camisa do meu time, é um presente, tá? Use quando quiser e se quiser…”.

Júlia reuniu suas últimas forças, seus últimos resquícios de paciência para dar uma resposta seca e definitiva ao sujeito: “Moço, eu já disse que não vou mudar de time, nem por ingresso, nem por camisa, nem por um milhão! Sou tricolor e ponto final!” Antes que o homem pudesse respondê-la, seu pai saiu do consultório.

“Vamos, filha”. Júlia, aliviada, recolheu suas coisas e levantou-se para acompanhar seu pai, quando o homem ainda fez um comentário dirigido a Paulo: “Sua filha além de linda tem muita personalidade, parabéns!”

Paulo agradeceu, deu um leve sorriso e saiu com Júlia, que não se despediu do sujeito. Já no corredor, defronte ao elevador, Paulo perguntou à filha: “O que vocês estavam conversando?”
Júlia, com ar de poucos amigos, respondeu: “Nada, pai”.
Paulo, percebendo a aflição da filha, persistiu: “Pode dizer, Júlia…o que houve?”. Ela então respondeu após meditar alguns instantes: “Sabe, pai, quando eu te perguntei o que era corrupção e você tentou me explicar, mas eu não consegui entender? Esquece. Eu já descobri o que é; o moço ali me explicou tudinho.”

Paulo sorriu para a filha no momento em que as portas do elevador de abriram. Júlia deu a sua mão para o pai, retribuiu o seu sorriso e entrou no elevador, envergando orgulhosa a sua camisa tricolor.

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