A alma tricolor (por João Leonardo Medeiros)

Body And Soul

O Fluminense não é time de futebol que veste camisa verde, grená e branco. Na verdade, trata-se de um time de futebol que veste camisa verde, grená e branco sobre uma alma igualmente tricolor. O que torna o clube particular, misterioso, insondável, imprevisível é o fato de que a alma tricolor decida autonomamente quando se manifestará.

Em essência, a alma tricolor impõe ao seu portador um comportamento peculiar. É essa essência que transforma rapazes esmirrados em feras recém saídas da jaula, que dota de talento notável indivíduos desprovidos de grande controle motor, que converte mercenários em fidelíssimos capitães de navios. Conhecendo a essência, também descobrimos quando e em quem se manifesta.

A primeira vez que vi, ao vivo, a alma tricolor encarnar numa equipe foi em 1983. Era meninote, com dez anos e incrivelmente inocente. Mesmo um moleque distraído como eu podia sentir que, naquele lance de último minuto, algo sobrenatural aconteceu. Paulo Victor pegou a bola possuído após o impedimento de Adílio. Jandir pegou-a nos braços como se retomasse o filho do sequestrador e passou para Deley. Deley era a alma tricolor em pessoa nesse momento: barbado, todo molhado, enlameado, imundo, possuído. Seu passe para Assis não foi coisa de gente em estado normal. Era a última chance de um título e ele estava tranquilo como santo em altar. A bola chegou no negão esguio como que um convite para ser padrinho de casamento. Assis sacramentou e, na comemoração, pode-se ver claramente a áurea mística que revela a presença da alma tricolor projetar-se de seu corpo.

De lá para cá, voltei a presenciar a alma tricolor encarnar por diversas vezes em jogadores trajados em verde, grená e branco. Ofereço apenas alguns exemplos mais recentes: Ronald, Aílton e Renato, na final de 1995; Roger na final de 1999; Antônio Carlos no título de 2005; todo o time na estreia do Flu contra o Arsenal na Libertadores de 2008; Thiago Neves e Washington contra o São Paulo na Libertadores; Thiago novamente na final do campeonato que perdemos; Conca nas 38 partidas de 2010; Carlinhos no jogo contra o Guarani; o Fred encantado de 2012.

Ao final de 2012, a alma tricolor desapareceu. Ela tem dessas coisas. De vez em quando, não há o menor sinal da alma verde, grená e branco, mesmo quando o time joga bem, com o fez nas partidas incríveis do começo da demasiadamente longa era Cristóvão. O diabo é que, nessas horas, ninguém sabe quando a alma vai retomar seus corpos, se é que ela vai mesmo. Dá uma aflição danada ver os jogadores do Flu trajados em três cores sem essência, sem conteúdo, desprovidos de tudo. Nesses momentos, até um extraclasse como Fred mata a bola na canela. Jogadores normais desaparecem, perebas parecem paralisados em campo.

Não sei exatamente quando, em que momento, a alma tricolor encarnou no time atual. Sei por quem começou, mas não sei quando. Quem foi? Por incrível que pareça, ela encarnou em Diego Cavalieri. O goleiro, um dos mais frios do país, não apenas melhorou seu desempenho, que rateava nas últimas temporadas, mas muniu-se de brios. Eu fico observando a expressão dos jogadores ao longo da partida. Está claro para mim que, já há algum tempo, Cavalieri está possuído, enfeitiçado. Em Fred, a coisa tricolor manifestou-se da mesma forma, como tônico revigorante, uma espécie de viagra para jogar bola. O cara remoçou em campo, corre, luta, grita, assusta os adversários só de olhar.

Vejam as feições de Marco Junior, de Scarpa, de Wellington Silva, de Gum, de Antônio Carlos, de Edson e mesmo de Jean. Os caras não estão normais, estão visivelmente alterados. Este domingo, no jogo contra o Atlético, nós vimos claramente a transmutação provocada pela encarnação da alma tricolor no lateral Renato. Até poucos segundos antes da jogada que decidiu o jogo, Renato não havia se acertado com a bola nem com os companheiros de time, chegando a atrapalhar Gum no lance do gol do Atlético. De repente, o cara se transfigurou e o resultado nós todos sabemos.

Vejam o lance (na ótima narração de Edson Mauro) e reparem nos pés de Renato. Ele não parece estar correndo sobre a grama, mas acima dela, levitando. Os pés enfeitiçados cruzam uma bola que raríssimos laterais no mundo inteiro hoje são capazes de fazer. A magia do cruzamento é belamente concluída com um golpe de lança, desferido pela testa de Fred.

http://sportv.globo.com/site/programas/redacao-sportv/noticia/2015/07/so-fred-salva-narrador-explode-com-gol-do-exterminador-do-tricolor.html

Se a alma tricolor não abandonar o corpo até o final do ano, a gente vai ser campeão brasileiro pela quinta vez. Se ela encarnar em Ronaldinho Gaúcho, a gente vai ganhar a Libertadores e o mundial no ano de 2016. Não sei o que fazer para garantir que a alma tricolor não escape. Não sei se funcionará, mas creio que ocupar o lugar na arquibancada e gritar feito louco pode ajudar em alguma coisa. Quem me acompanha?

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: jazz standarts

CAPA CARTAS DO TETRA GRANDE

10 Comments

  1. Seu texto merece aplausos! A alma Tricolor há que prevalecer. Sempre.

    ST.
    Irio

  2. Parabéns pelo texto! Brilhante! Acrescentaria a alma de Deco na final da Taça GB contra o Vasco em 2012.

    St

    1. Valeu grande Ernesto. By the way, suas colunas sempre me enchem de alegria. Quisera eu não ser um idiota completo e retribuir com elogios.

      ST,
      João

  3. Estaremos juntos nessa empreitada de não deixar essa alma escapar.
    No final de 2013 após a permanência na série A, fiz uma promessa que iria nos 19 jogos do Flu no Brasileiro, infelizmente, por problemas pessoais, fui a pouco mais da metade (10), talvez isso tenha atrapalhado nossa campanha em 2014 (risos). Neste ano, só não fui contra o Santos, mas estarei (farei de tudo) em todos até o final do campeonato. Esse time merece.

    Sempre acreditei no Fluminense pós Unimed, mas quero ressaltar,…

    1. Querido Eduardo: a Unimed saiu do Flu e está à beira da falência. Já o Flu…

      Eles estão tendo que nos engolir!

      ST,
      João

    1. Saudações Pentacolores, meu caro Daniel. Sejamos otimistas.

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