Escrevo aqui terça-feira. Terça é depois de segunda, segunda depois de domingo. Domingo de manhã, recebi uma mensagem pelo celular avisando do falecimento de Washington, um grande ídolo de infância. Sabia que todas as mídias tricolores lamentariam de imediato o falecimento do negão, com crônicas e depoimentos lindíssimos.
Isso me pôs diante de uma dúvida: encho a paciência dos (poucos) leitores com mais uma coluna sobre um tema do qual todos falaram, dando vazão a meus sentimentos, ou o inverso? Minha decisão foi tomada e tem por base um raciocínio único: nunca é demais falar de um ídolo, ainda mais pelas razões que apresentarei ao final. Mas as condições exigem criatividade, singularidade, e nada como uma experiência pessoal para resolver o problema.
Maracanã, Rio de Janeiro, primeiro de fevereiro de 1989. Do alto dos meus 15 anos, acompanhado do meu amigo de infância, Werneck, entrei no estádio para sentar-me no antigo camarote. Na prática, tratava-se de um cercadinho mal iluminado atrás das cadeiras, mas o ingresso vinha de graça, pois o pai de Werneck era gerente da Sears e lá recebia a cortesia.
O jogo era em 1989, mas o campeonato era o de 1988, que teria o Bahia de Bobô como grande campeão. O Flu tinha um grande time (Edinho, Eduardo, Jandir, Donizete, Washington e Romerito), que seria eliminado apenas pelo Bahia na semifinal. O jogo era o segundo do mata-mata das quartas, contra o Vasco. Tínhamos vencido o primeiro por 1×0, jogávamos pelo empate e fomos logo fazendo 1×0 num lançamento espetacular de Washington para Donizete.
No final do primeiro tempo, o Vasco empatou, mas a expulsão de Célio no começo do segundo deu a impressão de que o Flu não perderia a classificação. O Vasco, no entanto, cresceu no jogo, empurrado adiante por ninguém menos que Giovani, Bismarck e Roberto. Aos 44 do segundo tempo, o abafa final do Vasco resultou no gol de Leonardo, que levaria o jogo para a prorrogação.
Eu e Werneck (então com um décimo do tamanho de hoje) saímos do ar. O jogo havia sido tenso e acabou tragicamente para o Flu. Nenhum dos dois conseguia falar. Nenhum dos dois conseguia pensar. Calados, descemos para o banheiro e fomos meio que saindo, tão atordoados que esquecemos da prorrogação. No meio do caminho, uma alma lembrou: tem mais 30 minutos e o Flu tem um a mais. Opa, acabara o tempo regulamentar, mas tinha a prorrogação.
Voltamos e sentamos nas cadeiras azuis. O camarote era tão bom que não dava para ver absolutamente nada direito num jogo em que ninguém mais se sentava. O Flu voltou muito bem na prorrogação e o Vasco atrás, fazendo cera, falta, catimba, tudo que tem direito. Deu certo um tempo, mas, logo no começo do segundo, o efêmero fenômeno Zé Maria empatou o jogo. Faltava um gol.
E ele viria no final. O autor: Washington. Recebendo um excelente passe de Zé Maria, Washington finalizou genialmente, encobrindo Acácio. A beleza da jogada fala por si e a emoção do gol decisivo não poderia ser traduzida em palavras. Vejam vocês mesmos:
Não seria a primeira vez que um gol de Washington me fascinaria. Tinha menos de 10 anos quando vi ele e Assis acabando com o Flamengo, ainda jogando no Atlético do Paraná. Vi no estádio, com meu pai, irmão e amigos, os golaços e golzinhos de Washington que todos lembraram agora. Vi tudo de perto, vibrei a cada gol.
Ainda meniníssimo, portanto, aprendi a idolatrar aquele crioulo esguio, elegante até a alma. Posso dizer que ele e Assis foram os primeiros negros que, de fato, tomei como ídolos, como exemplos pessoais de conduta, não só no futebol, mas na vida. Agora vejam só: eu, garoto de classe média, estudante de escola privada, não tinha contato regular com pessoas de pele negra. Havia menos de 200 estudantes claramente negros nos mais de 3.000 da escola que frequentava. O ambiente social era racista. A educação era racista. O cotidiano era racista.
Foi no futebol (especificamente no Fluminense) que encontrei os primeiros fundamentos da crítica a essa atitude. E os encontrei por meio de Washington e Assis. Os dois eram imensos – seriam, hoje, craques mundiais, eram grandes craques. Mas ambos tinham a simplicidade de um mortal qualquer, agiam e pensavam desta forma e talvez tenham sido preteridos em voos mais ambiciosos (falo de seleção) por sua cor da pele e por sua simplicidade. Se me livrei (e acho que me livrei) deste odioso sentimento, de suas abomináveis implicações, devo isso, sem dúvidas, a Washington (e a Assis). Não poderia deixar de registrar minha eterna gratidão na despedida do grande ídolo. Eu também queria agradecer e aqui o faço depois dos outros, mas não com menos emoção.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri
Imagem: Rods (retirada do Youtube)
Grande depoimento!!!
Valeu Roberto.
Saudações tricolores,
João