Depois de ler muitos comentários, em 2012, acerca do possível mau desempenho de Fred, resolvi escrever sobre ele sem nunca ter estado nem perto, nem ao menos conversado com o centroavante tricolor. O jornalista e escritor Gay Talese publicou pequenos perfis em Honra & anonimato (São Paulo, Companhia das Letras), tendo pouco – mas algum tipo de – contato pessoal com personagens que iam de Frank Sinatra ao jornalista que produzia obituários e já havia deixado pronto o seu. De fato, pensei que saía em desvantagem… Fred e eu fazemos parte de mundos muito distantes e distintos em diversos aspectos. Como Sinatra e Talese, o que nos aproxima, em alguma medida, é morarmos na mesma cidade, naquela época, e o fato do escritor admirar a pessoa que transformou em protagonista de um despretensioso texto seu. Em meu caso em específico, Fred e eu temos uma relação de amor, cada um ao seu modo, em sua trajetória, com o Fluminense.
Embora tivesse acabado de desembarcar no Rio vindo de uma temporada de trabalho nos Estados Unidos da América, ainda embaralhando os idiomas nas salas de aula, havia acompanhado as notícias sobre fatos ocorridos no Brasil e mais ainda sobre o Fluminense. Além disso, tinha visto jogos memoráveis como o da a final da Taça Guanabara contra o Vasco da Gama e o do Boca Júniors, na Bombonera. Assim, havia alguns dias, independente de estar falando e pensando em inglês, na maior parte do tempo, que diversas opiniões questionadoras acerca da capacidade técnica de Fred, do investimento que o Flu nele fazia e também sobre seus comportamentos na vida particular andavam me intrigando. Elas me afetavam além da conta. Pensava um monte de coisas sobre isso e comecei a redigir um texto, espécie de desabafo pra mim mesmo. Depois de alguns dias, resolvi relê-lo e também publicá-lo dentro da equipe de cronistas tricolores capitaneada por Paulo-Roberto Andel.
Em poucos minutos em que ela estava na rede mundial de computadores, tive duas surpresas: o número de acessos havia ultrapassado em muito minhas expectativas e o próprio Fred, ao ter lido o texto por meio de sua acessoria de imprensa, emitiu opinião. Escreveu uma breve espécie de agradecimento, pelo seu Twitter. O jogador avaliou que o texto fazia parte do rol de situações que ainda o motivavam a treinar a cada dia e ter vontade de jogar futebol e defender o Flu. Sinceramente, não esperava que um longuíssimo artigo fosse lido, noves fora Rejane e os poucos amigos dentro de suas abarrotadas agendas, por tantas pessoas – quanto mais ainda pelo próprio personagem!
Naquele período, Fred não vinha sendo lembrado para fazer parte da seleção brasileira, e quando convocado era pouco ou nada aproveitado. E muitos ainda faziam piada, principalmente os torcedores das agremiações rivais cariocas. com algumas de suas sucessivas contusões. Desde o último domingo, após consagrar-se como um dos jogadores mais importantes que vestiram a camisa do Flu, com o desempenho de craque liderando o grupo campeão brasileiro de 2012, Fred marcou sua passagem na seleção com papel não menos importante. Agora, nas vitórias e nos momentos mais confortáveis afetivamente, fãs do atacante borbotam por aí – dentro e fora de nossa torcida. Fãs de última hora do mesmo modo como manifestantes de ocasião. Se ele já não tinha que pagar nada a ninguém, como qualquer abnegado pelo Flu em assunto que for que o envolva, e nem provar, agora mesmo é que esse tipo de presunção não se sustentará!
Por tudo isso, segue a republicação do texto, originalmente postado em 22 de março de 2012, agora no Panorama Tricolor
Fred: ainda vale a pena ver futebol!
Estava esperando um ônibus no início de 2009, quando olhei para a banca de jornais e vi a manchete, que dizia mais ou menos assim: ”Mistério revelado: Fred é o craque do Flu!” Foram alguns meses de novela sobre o tal grande jogador, nível de seleção brasileira, que havia marcado gol em Copa do Mundo, que estava prestes a ser jogador do Flu. Havia pensado, naquele tempo, em algumas possibilidades e, entre elas, estava Fred. Não entendia muito bem porque, ainda jovem, ele voltaria ao Brasil. Ainda mais para o Flu, e não para o Cruzeiro. Logo, logo deixei de lado essa ideia, e, por isso, me surpreendi quando li a notícia.
Na sua estreia, forçando um pouco a barra em termos de forma física, Fred fez gol. Aí veio a conta: um rosário de contusões. Pronto, disse a mim mesmo, voltou ao Brasil porque estava “bichado”. Mas, como não gosto de fazer acusações desse tipo, coloquei como uma suposição diante de tantos casos já vistos em nosso futebol. Com o time em baixa no brasileiro, Fred voltou de uma gravíssima contusão ainda meia-boca. Muitos disseram: “tá vendo, vai se contundir novamente!” Tudo ficou claro em seus depoimentos nos dias seguintes do marcante jogo com o Coritiba. Fred revelou, junto com o técnico Cuca, suas conversas sobre um dilema: a vontade de jogar sem estar ainda 100% técnica e fisicamente, embora clinicamente, curado, e a insegurança afetiva de se contundir novamente e nunca mais ser o mesmo jogador. A torcida tricolor passou a saber que o técnico e o atacante haviam combinado uma tática: ele estaria em campo para preocupar os adversários, dar segurança aos mais jovens e, quem sabe, em algum lance de oportunismo, fazer gol aproveitando sua mira acima da média. Hoje, todos sabemos como isso deu certo. Contra o Palmeiras, no calor de um Maracanã lotado, Fred se quer saiu do chão para fazer de cabeça, com precisão cirúrgica, um gol que muitos não faziam com os pés. Contra o Vitória, o que dizer do chute de fora da área?
A arrancada no Brasileirão e a chegada à final da Sul-americana foram o que hoje sabemos o berço do título nacional de 2010. Contudo, no meio desses dois marcos da história do Flu, após o Time de Guerreiros ser construído, vieram uma série de reportagens acusando Fred de ser boêmio, e até mesmo ser supostamente flagrado completamente alcoolizado em bares da Zona Sul do Rio. É, parece que nosso time tinha também, para certa imprensa, que ter um jogador “bad boy”. E ainda teve aquela outra acusação do atacante mineiro estar surfando no horário do tratamento ou do jogo do Flu! Vou insistir nisso: acusações de estar embriagado fora de seu ambiente de trabalho ou não se tratando. Acusações! Por favor, gente. Sem moralismos depois de tantos anos de Ditadura Militar! São acusações, feitas por uma turma de passado e presente comprovadamente nada ilibados, não é mesmo?
Esse jogador vem chamando minha atenção. Não vou aqui fazer uma listagem do tipo puxação de saco das coisas “legais”, “bacanas”, que Fred tem ou faz, e nem de ninguém. Por favor… Minha ideia é olhar algumas características desse jogador de modo um pouco distinto do que venho lendo e escutando sobre ele. O que não é melhor e nem pior, mas diferente, e a minha forma de entendê-lo. Adianto: vejo Fred como um jogador diferente dos demais em diversos sentidos. O técnico é o mais óbivo.
Na mesma época da entrevista com Cuca, Fred revelou que se recusou a escutar a proposta do Roma e de um clube inglês porque em sua opinião tinha uma dívida moral com o Flu. Na sua concepção, ele não jogara nada daquilo que haviam esperado, e não havia provado nada pra torcida que o acolhia com tanto carinho. Isso ainda sem ter sido campeão em 2010! Ele também afirmou aos repórteres algo do tipo que se sentia um covarde só de pensar em deixar o Flu naquela situação de quase-rebaixado por parte influente da grande mídia. Bravatas? Não quero entrar nessa sem provas, e não fiz concurso pra órgãos de segurança porque essa não é minha praia mesmo. Essas palavras de Fred foram importantes, em minha concepção, porque ele soube segurar a pressão em um momento de tensão total do time, e dar exemplo positivo de como agregar valores morais ao uma pessoa, um nome. Isso, quando se tem o reconhecimento alheio, chama-se reputação! Imaginemos um menino, como Digão ou Maicon, chegando pra treinar, cedo, de ônibus, com pouca grana, recém-saídos dos juniores, depois de ler nos jornais que seu ídolo, capitão e colega de trabalho tinha assinado contrato e tudo com aqueles times. Aí, eles perguntam: “Fred, você vai quando, cara?” E o colega, Fred, responde: “Eu não vou deixar você, o clube e a torcida na mão. Eu vou ficar. Vamos treinar e superar isso tudo. Sem chinelinho!” Em minha opinião, claro que sem essas exatas palavras, isso deve ter ocorrido, de algum modo, turbinando o ambiente, os meninos, a vontade de Cuca e sua comissão técnica, para a superação de cada jogo daqueles dois campeonatos.
Então o nosso capitão vai contra a maré de confusão moral e ética do “mundo da bola” e da imprensa oba-oba boquinha de elogios pagos e encomendados, e não deixa o time e a torcida no meio de um campeonato pra quadruplicar, suponho, no mínimo, seu salário? Sim, foi isso mesmo! Mas isso não dá manchete, né?… Fred foi fotografado e capa de jornais sensacionalistas em posições eróticas em horários em que deveria estar no trabalho? Não, em hipótese alguma! Quando ele esteve chateado com parte da grande mídia, ele deu piti-histérico, fez biquinho que nem uma criança mimada, xingou algum jornalista ou coisa que o valha, “saiu no braço” com eles ou com membros de torcidas organizadas, escarrou nas lentes de câmeras ou tentou destruí-las? Não, nada disso. Simplesmente parou de dar entrevistas por um período. Ele tem esse direito. Todos temos. E nem por isso parou de atender a fãs nas ruas, no clube, em lugares públicos, com autógrafos e sorridentes poses pra fotos. Muito menos de ir pra torcida jogando corações vindos do escuto do clube, ao invés de gritar palavrões pras câmeras das tvs ou correr para placas de certas empresas nos clássicos jabás. Ele correu pra torcida, e para os colegas de trabalho, sim, trabalho, na beira do campo. Mas isso não dá ibope, né? Tem que falar rameirice pras câmeras e fazer gestos obscenos, mostrar raiva, e falar muito palavrão, coçar a genitália. Fred se envolveu em algum escândalo de não-pagamento por serviços sexuais? Pra imprensa, e não para a torcida do Flu, que pena que não. Ele se meteu em alguma paternidade desavisada? Também não.
E aí vem a minha pergunta: por que ele continuava no Flu, e, mais, no Brasil, no Rio, tendo sido ídolo na França, vencendo as barreiras de ser imigrante, latino-americano, ganhado títulos e reconhecimento no exigente futebol europeu, vivido a dignidade de trabalhar em condições materiais ótimas? Por que ele recusava propostas tão tentadoras, ainda jovem? Pensei, na época, que ele tinha, quase que com certeza, uma relação bem diferente, outsider mesmo, com seu empresário em relação ao que tem de mais comum no “mundo da bola”. Com Fred, acho, não rola pressão e esqueminha pra sair de clube mesmo a contragosto. Mas o outro motivo, que também não dá manchete porque não tem “modelo, atriz e manequim” com nome metafórico sexualizando seu corpo como um mero pedaço de carne a ser devorado por pessoas famintas de gozo envolvida em jogadas de bastidores, como orgias sem limites, e nem dinheiro de contravenção de nenhum tipo, eu percebi nas entrevistas dele ao longo de 2010. Fred queria ficar perto da filha, Geovana, isto é, ser pai, participar ativamente, com muito afeto, ser uma referência presente, na vida da menina. Ele simplesmente achou uma forma de ser responsável. Ele fez a filha, entendeu que não se trata de um mero ato biológico de reprodução. É um ato e pessoa afetivamente adulta – a princípio – também. Aí, eu vi que fazia sentido não abandonar o time na pior. Ele não deixou a filha no Brasil, com a mãe, não necessariamente sua esposa, e vai ganhar mais do que ele já tem de montão. Ele também não fica dando de bonzinho bacana de que é maridão de pai. Ele é o pai. E ponto. Não interessa a ninguém, a não ser a ele e à menina, quem é a mãe. Então, ele fica no Brasil, no Rio, onde se sente bem, valorizado, em todos os aspectos, assume suas responsabilidades. Mora em Ipanema, não anda com seguranças, com relógios e roupas escandalosas e chamativas, com joias penduradas pelo corpo, seguindo o gosto enlatado dos “persoais stilists” de plantão. Não vai morar na Barra da Tijuca – muito comum entre jogadores. Perde pênaltes, muda a batida, e novamente marca esses gols. Não põe a culpa em ninguém. Em juiz, bandeirinha, torcida adversária. Pede desculpas quando perde a cabeça, mas tenta novamente até acertar. Treina.
Entendi esse valor de Fred, péssimo pra quem banca BBB ou novelas com tramas muito toscas, na maior parte das vezes, ou jornalistas que se quer vão aos lugares coletar dados, mas escrevem do ar-condicionado das redações o que bem entendem a partir de fontes nada ou pouco confiáveis ou negociações obscuras. Ele tem uma forte rede familiar de sustentação afetiva de suas atitudes. Certa vez, tal como Pelé, ao ser perguntado sobre sua técnica apurada em todos os fundamentos, até mesmo na defesa, Fred revelou que seu pai o treinava no quintal de casa. Ele treinava, galera! Desenvolvia técnicas racionais para ser alguém na vida pelo esforço, pela repetição, pelo aperfeiçoamento, e não pelas chances cavadas dentro do “mundo empresarial da bola”. Esse valor foi passado pelo pai, presumo, de assumir as consequências de suas atitudes e não deixar as suas contas na caixa de correios dos outros para serem pagas. Portanto, nosso craque sabe ver, enxergar, futebol, o jogo desde pequeno. Dá valor à técnica e táticas, porque pra ele, pra quem diz que fez sua vida assim, não vale a pena conseguir as coisas na base da esculhambação. Pra ele, esforço e humildade são fundamentais.
A partir dessas informações, passei a entender a importância de Fred dentro de campo, mesmo sem totais condições físicas, técnicas ou emocionais de jogo. Sempre observei Fred como uma espécie de Delei e Jandir, que cantavam o jogo para os colegas. Nas campanhas de 2009, ele ajustava o posicionamento do time, voltava à defesa pra ver se tudo estava ok, falava aos goleiros como bater na bola, como os zagueiros deveriam marcar os atacantes, os volantes passarem as bolas roubadas logo para Conca, pra Maicon abrir bem pela ponta e olhar antes de cruzar, levantar a cabeça e, algumas vezes, cortar em diagonal. Aliás, como o nosso ídolo argentino cresceu com a entrada de Fred, minimamente em forma, no time! Nunca jogou tanto! Conca mudou o seu estilo de bater na bola, passou bolas de primeira, a dar dribles com poucos toques, inventava sem inventar, sem ilógico, sabendo o momento de cadenciar o jogo, descansar com inteligência e irritar os adversários. Sempre com lealdade, sem reclamar. Como Fred.
Já escrevi aqui sobre a precariedade de todos os técnicos que estão aí na crista da onda do “mundo da bola”, tentando analisar os motivos desse fenômeno social, observando alguns caminhos de entendimento. Nesse sentido, não vou me repetir. Como também, nessa linha, vejo como Fred é o nosso técnico, em campo, à moda antiga. Como? Sendo criativo, manjando de esquemas de jogo, táticas e jogadas ensaiadas. Sabendo quando e onde atacar, defender e segurar o jogo. Ele arma o time sem olhar para Abel, e sem desrespeitá-lo. Não mostra arrogância e escuta a experiência de Deco, como no jogo com o Boca Jrs. Alguém se lembra? Penso que sim. Que cena marcante a troca de poucas palavras antes do primeiro gol, hein? Vez por outra, Fred faz o pivô enquanto procura alguém bem posicionado pra fazer a jogada, aproveitando seu tamanho, e não porque é um desengonçado. Recusa-se a dar a bola toca ruim para seus colegas. Joga em equipe – indo contra a onda de individualismos que assola nossa sociedade, e, claro, o “mundo da bola”. Ele não cava pênaltes, tenta o gol. Não enfatiza a força, mas sim a mira, a bola bem colocada. Enfrenta juízes, peita os adversários estrangeiros, mostra que não é um bobão, que não se intimidará. Por tudo isso, ele foi, sim, fundamental no título nacional de 2010, no Tri!
Nem sempre consegue de primeira. Mas tenta, e tenta, e vai tentando até conseguir. Quando não atinge seu objetivo, se levanta, ergue a cabeça e segue em frente. Não liga para paspalhices numéricas, que Paulo Andel desmistifica a cada semana aquilo que muitos tentam nos empurrar goela abaixo como sendo estatísticas – sem se quer saberem a diferença para probabilidades. Fred faz como o Flu, e esse time do Flu, desde 2009, como Fred.
Obrigado, Fred, por fazer ainda valer a pena ver alguns jogos de futebol. É bom tê-lo no meu time de coração!
Luiz Alberto Couceiro
Panorama Tricolor
@PanoramaTri